BIBLIOTHECA AUGUSTANA

 

Fernando Pessoa

1888 - 1935

 

Mensagem

 

Segunda parte

 

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MAR PORTUGUEZ

Possessio maris.

 

I. O INFANTE

 

Deus quere, o homem sonha, a obra nasce.

Deus quis que a terra fosse toda uma,

Que o mar unisse, já não separasse.

Sagroute, e foste desvendando a espuma,

 

E a orla branca foi de ilha em continente,

Clareou, correndo, até ao fim do mundo,

E viu-se a terra inteira, de repente,

Surgir, redonda, do azul profundo.

 

Quem te sagrou criou-te português.

Do mar e nós em ti nos deu sinal.

Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.

Senhor, falta cumprir-se Portugal!

 

 

II. HORIZONTE

 

O mar anterior a nós, teus medos

Tinham coral e praias e arvoredos.

Desvendadas a noite e a cerração,

As tormentas passadas e o mistério,

 

Abria em flor o Longe, e o Sul sidério

'Splendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa da longínqua costa –

Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta

 

Em árvores onde o Longe nada tinha;

Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:

E, no desembarcar, há aves, flores,

Onde era só, de longe a abstracta linha

 

O sonho é ver as formas invisíveis

Da distância imprecisa, e, com sensíveis

Movimentos da esp'rança e da vontade,

Buscar na linha fria do horizonte

 

A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte –

Os beijos merecidos da Verdade.

 

 

III. PADRÃO

 

O esforço é grande e o homem é pequeno.

Eu, Diogo Cão, navegador, deixei

Este padrão ao pé do areal moreno

E para diante naveguei.

 

A alma é divina e a obra é imperfeita.

Este padrão sinala ao vento e aos céus

Que, da obra ousada, é minha a parte feita:

O porfazer é só com Deus.

 

E ao imenso e possível oceano

Ensinam estas Quinas, que aqui vês,

Que o mar com fim será grego ou romano:

O mar sem fim é português.

 

E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma

E faz a febre em mim de navegar

Só encontrará de Deus na eterna calma

O porto sempre por achar.

 

 

IV. O MOSTRENGO

 

O mostrengo que está no fim do mar

Na noite de breu ergueu-se a voar;

A roda da nau voou três vezes,

Voou três vezes a chiar,

 

E disse: "Quem é que ousou entrar

Nas minhas cavernas que não desvendo,

Meus tectos negros do fim do mundo?"

E o homem do leme disse, tremendo:

 

"El-Rei D. João Segundo!"

"De quem são as velas onde me roço?

De quem as quilhas que vejo e ouço?"

Disse o mostrengo, e rodou três vezes,

 

Três vezes rodou imundo e grosso.

"Quem vem poder o que só eu posso,

Que moro onde nunca ninguém me visse

E escorro os medos do mar sem fundo?"

 

E o homem do leme tremeu, e disse:

"El-Rei D. João Segundo!"

Três vezes do leme as mãos ergueu,

Três vezes ao leme as reprendeu,

 

E disse no fim de tremer três vezes:

"Aqui ao leme sou mais do que eu:

Sou um povo que quer o mar que é teu;

E mais que o mostrengo, que me a alma teme

 

E roda nas trevas do fim do mundo,

Manda a vontade, que me ata ao leme,

De El-Rei D. João Segundo!"

 

 

V. EPITÁFIO DE BARTOLOMEU DIAS

 

Jaz aqui, na pequena praia extrema,

O Capitão do Fim. Dobrado o Assombro,

O mar é o mesmo: já ninguém o tema!

Atlas, mostra alto o mundo no seu ombro.

 

 

Vl. OS COLOMBOS

 

Outros haverão de ter

O que houvermos de perder.

Outros poderão achar

O que, no nosso encontrar,

 

Foi achado, ou não achado,

Segundo o destino dado.

Mas o que a eles não toca

É a Magia que evoca

 

O Longe e faz dele história.

E por isso a sua glória

É justa auréola dada

Por uma luz emprestada.

 

 

VII. OCIDENTE

 

Com duas mãos – o Acto e o Destino –

Desvendámos. No mesmo gesto, ao céu

Uma ergue o fecho trémulo e divino

E a outra afasta o véu.

 

Fosse a hora que haver ou a que havia

A mão que ao Ocidente o véu rasgou,

Foi a alma a Ciência e corpo a Ousadia

Da mão que desvendou.

 

Fosse Acaso, ou Vontade, ou Temporal

A mão que ergueu o facho que luziu,

Foi Deus a alma e o corpo Portugal

Da mão que o conduziu.

 

 

VIII. FERNÃO DE MAGALHÃES

 

No vale clareia uma fogueira.

Uma dança sacode a terra inteira.

E sombras desformes e descompostas

Em clarões negros do vale vão

 

Subitamente pelas encostas,

Indo perder-se na escuridão.

De quem é a dança que a noite aterra?

São os Titãs, os filhos da Terra,

 

Que dançam na morte do marinheiro

Que quis cingir o materno vulto

– Cingilo, dos homens, o primeiro – ,

Na praia ao longe por fim sepulto.

 

Dançam, nem sabem que a alma ousada

Do morto ainda comanda a armada,

Pulso sem corpo ao leme a guiar

As naus no resto do fim do espaço:

 

Que até ausente soube cercar

A terra inteira com seu abraço.

Violou a Terra. Mas eles não

O sabem, e dançam na solidão;

 

E sombras desformes e descompostas,

Indo perder-se nos horizontes,

Galgam do vale pelas encostas

Dos mudos montes.

 

 

IX. ASCENSÃO DE VASCO DA GAMA

 

Os Deuses da tormenta e os gigantes da terra

Suspendem de repente o ódio da sua guerra

E pasmam. Pelo vale onde se ascende aos céus

Surge um silêncio, e vai, da névoa ondeando os véus,

 

Primeiro um movimento e depois um assombro.

Ladeiamo, ao durar, os medos, ombro a ombro,

E ao longe o rastro ruge em nuvens e clarões.

Em baixo, onde a terra é, o pastor gela, e a flauta

 

Cailhe, e em êxtase vê, à luz de mil trovôes,

O céu abrir o abismo à alma do Argonauta.

 

 

X. MAR PORTUGUÊS

 

Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

 

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

 

Quem quere passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,

Mas nele é que espelhou o céu.

 

 

XI. A ÚLTIMA NAU

 

Levando a bordo ElRei D. Sebastião,

E erguendo, como um nome, alto o pendão

Do Império,

Foi-se a última nau, ao sol aziago

 

Erma, e entre choros de ânsia e de presago

Mistério.

Não voltou mais. A que ilha indescoberta

Aportou? Voltará da sorte incerta

 

Que teve?

Deus guarda o corpo e a forma do futuro,

Mas Sua luz projecta-o, sonho escuro

E breve.

 

Ah, quanto mais ao povo a alma falta,

Mais a minha alma atlântica se exalta

E entorna,

E em mim, num mar que não tem tempo ou 'spaço,

 

Vejo entre a cerração teu vulto baço

Que torna.

Não sei a hora, mas sei que há a hora,

Demorea Deus, chame-lhe a alma embora

 

Mistério.

Surges ao sol em mim, e a névoa finda:

A mesma, e trazes o pendão ainda

Do Império.

 

 

XII. PRECE

 

Senhor, a noite veio e a alma é vil.

Tanta foi a tormenta e a vontade!

Restam-nos hoje, no silêncio hostil,

O mar universal e a saudade.

 

Mas a chama, que a vida em nós criou,

Se ainda há vida ainda não é finda.

O frio morto em cinzas a ocultou:

A mão do vento pode erguêla ainda.

 

Dá o sopro, a aragem – ou desgraça ou ânsia –

Com que a chama do esforço se remoça,

E outra vez conquistaremos a Distância –

Do mar ou outra, mas que seja nossa!