Fernando Pessoa
1888 - 1935
Mensagem
Primeira parte
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BRASÃO
I. OS CAMPOS
PRIMEIRO / OS CASTELOS
A Europa jaz, posta nos cotovelos:De Oriente a Ocidente jaz, fitando,E toldam-lhe românticos cabelosOlhos gregos, lembrando.
O cotovelo esquerdo é recuado;O direito é em ângulo disposto.Aquele diz Itália onde é pousado;Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.Fita, com olhar sphyngico e fatal,O Ocidente, futuro do passado.O rosto com que fita é Portugal.
SEGUNDO / O DAS QUINAS
Os Deuses vendem quando dão.Comprase a glória com desgraça.Ai dos felizes, porque sãoSó o que passa!
Baste a quem baste o que Ihe bastaO bastante de Ihe bastar!A vida é breve, a alma é vasta:Ter é tardar.
Foi com desgraça e com vilezaQue Deus ao Cristo definiu:Assim o opôs à NaturezaE Filho o ungiu.
II. OS CASTELOS
PRIMEIRO / ULISSES
O mito é o nada que é tudo.O mesmo sol que abre os céusÉ um mito brilhante e mudo –O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.Este, que aqui aportou,Foi por não ser existindo.Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindoE nos criou.Assim a lenda se escorreA entrar na realidade,
E a fecundála decorre.Em baixo, a vida, metadeDe nada, morre.
SEGUNDO / VIRIATO
Se a alma que sente e faz conheceSó porque lembra o que esqueceu,Vivemos, raça, porque houvesseMemória em nós do instinto teu.
Nação porque reencarnaste,Povo porque ressuscitouOu tu, ou o de que eras a haste –Assim se Portugal formou.
Teu ser é como aquela friaLuz que precede a madrugada,E é ja o ir a haver o diaNa antemanhã, confuso nada.
TERCEIRO / O CONDE D. HENRIOUE
Todo começo é involuntáario.Deus é o agente.O herói a si assiste, várioE inconsciente.
A espada em tuas mãos achadaTeu olhar desce."Que farei eu com esta espada?"Ergueste-a, e fez-se.
QUARTO / D. TAREJA
As naçôes todas são mistérios.Cada uma é todo o mundo a sós.Ó mãe de reis e avó de impérios,Vela por nós!
Teu seio augusto amamentouCom bruta e natural certezaO que, imprevisto, Deus fadou.Por ele reza!
Dê tua prece outro destinoA quem fadou o instinto teu!O homem que foi o teu meninoEnvelheceu.
Mas todo vivo é eterno infanteOnde estás e não há o dia.No antigo seio, vigilante,De novo o cria!
QUINTO / D. AFONSO HENRIQUES
Pai, foste cavaleiro.Hoje a vigília é nossa.Dános o exemplo inteiroE a tua inteira força!
Dá, contra a hora em que, errada,Novos infiéis vençam,A bênção como espada,A espada como benção!
SEXTO / D. DINIS
Na noite escreve um seu Cantar de AmigoO plantador de naus a haver,E ouve um silêncio múrmuro consigo:É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver.Arroio, esse cantar, jovem e puro,Busca o oceano por achar;E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,É a voz da terra ansiando pelo mar.
SÉTIMO (I) / D. JOÃO O PRIMEIRO
O homem e a hora são um sóQuando Deus faz e a história é feita.O mais é carne, cujo póA terra espreita.
Mestre, sem o saber, do TemploQue Portugal foi feito ser,Que houveste a glória e deste o exemploDe o defender.
Teu nome, eleito em sua fama,É, na ara da nossa alma interna,A que repele, eterna chama,A sombra eterna.
SETIMO (II) / D. FILIPA DE LENCASTRE
Que enigma havia em teu seioQue só génios concebia?Que arcanjo teus sonhos veioVelar, maternos, um dia?
Volve a nós teu rosto sério,Princesa do Santo Gral,Humano ventre do Império,Madrinha de Portugal!
III. AS QUINAS
PRIMEIRA / D. DUARTE, REI DE PORTUGAL
Meu dever fez-me, como Deus ao mundo.A regra de ser Rei almou meu ser,Em dia e letra escrupuloso e fundo.Firme em minha tristeza, tal vivi.
Cumpri contra o Destino o meu dever.Inutilmente? Não, porque o cumpri.
SEGUNDA / D. FERNANDO, INFANTE DE PORTUGAL
Deu-me Deus o seu gládio, porque eu façaA sua santa guerra.Sagrou-me seu em honra e em desgraça,As horas em que um frio vento passa
Por sobre a fria terra.Pôsme as mãos sobre os ombros e doirou-meA fronte com o olhar;E esta febre de Além, que me consome,
E este querer grandeza são seu nomeDentro em mim a vibrar.E eu vou, e a luz do gládio erguido dáEm minha face calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá,Pois venha o que vier, nunca seráMaior do que a minha alma.
TERCEIRA / D. PEDRO, REGENTE DE PORTUGAL
Claro em pensar, e claro no sentir,É claro no querer;Indiferente ao que há em conseguirQue seja só obter;
Dúplice dono, sem me dividir,De dever e de ser –Não me podia a Sorte dar guaridaPor não ser eu dos seus.
Assim vivi, assim morri, a vida,Calmo sob mudos céus,Fiel à palavra dada e à ideia tida.Tudo o mais é com Deus!
QUARTA / D. JOÃO, INFANTE DE PORTUGAL
Não fui alguém. Minha alma estava estreitaEntre tão grandes almas minhas pares,Inutilmente eleita,Virgemmente parada;
Porque é do português, pai de amplos mares,Querer, poder só isto:O inteiro mar, ou a orla vã desfeita –O todo, ou o seu nada.
QUINTA / D. SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL
Louco, sim, louco, porque quis grandezaQual a Sorte a não dá.Não coube em mim minha certeza;Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.Minha loucura, outros que me a tomemCom o que nela ia.Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,Cadáver adiado que procria?
IV. A COROA
NUN'ÁLVARES PEREIRA
Que auréola te cerca?É a espada que, volteando.Faz que o ar alto percaSeu azul negro e brando.
Mas que espada é que, erguida,Faz esse halo no céu?É Excalibur, a ungida,Que o Rei Artur te deu.
'Sperança consumada,S. Portugal em ser,Ergue a luz da tua espadaPara a estrada se ver!
V. O TIMBRE
A CABEÇA DO GRIFO / O INFANTE D. HENRIOUE
Em seu trono entre o brilho das esferas,Com seu manto de noite e solidão,Tem aos pés o mar novo e as mortas eras –O único imperador que tem, deveras,
O globo mundo em sua mão.
UMA ASA DO GRIFO / D. JOÃO O SEGUNDO
Braços cruzados, fita além do mar.Parece em promontório uma alta serra –O limite da terra a dominarO mar que possa haver além da terra.
Seu formidavel vulto solitárioEnche de estar presente o mar e o céuE parece temer o mundo várioQue ele abra os braços e lhe rasgue o véu.
A OUTRA ASA DO GRIFO / AFONSO DE ALBUQUERQUE
De pé, sobre os países conquistadosDesce os olhos cansadosDe ver o mundo e a injustiça e a sorte.Não pensa em vida ou morte
Tão poderoso que não quere o quantoPode, que o querer tantoCalcara mais do que o submisso mundoSob o seu passo fundo.
Três impérios do chão lhe a Sorte apanha.Criou-os como quem desdenha. |