Luís Vaz de Camões
1524/25 -1580
Os Lusíadas
Canto IX
|
|
___________________________________________________
|
|
Canto nono.
|
|
1 | Tiveram longamente na cidade,Sem vender-se, a fazenda os dois feitoresQue os infiéis, por manha e falsidade,Fazem que não lha comprem mercadores;Que todo seu propósito e vontadeEra deter ali os descobridoresDa Índia tanto tempo, que viessemDe Meca as naus, que as suas desfizessem.
|
2 | Lá no seio Eritreu, onde fundadaArsínoe foi do Egípcio Ptolomeu,Do nome da irmã sua assim chamada,Que depois em Suez se converteu,Não longe o porto jaz da nomeadaCidade Meca, que se engrandeceuCom a superstição falsa e profanaDa religiosa água Maumetana.
|
3 | Gidá se chama o porto, aonde o tratoDe todo o Roxo mar mais florescia,De que tinha proveito grande e gratoO Soldão que esse Reino possuía.Daqui aos Malabares, por contratoDos infiéis, formosa companhiaDe grandes naus, pelo Índico Oceano,Especiaria vem buscar cada ano.
|
4 | Por estas naus os Mouros esperavam,Que, como fossem grandes e possantes,Aquelas, que o comércio lhe tomavam,Com flamas abrasassem crepitantes.Neste socorro tanto confiavam,Que já não querem mais dos navegantes,Senão que tanto tempo ali tardassem,Que da famosa Meca as naus chegassem.
|
5 | Mas o Governador dos céus e gentes,Que, para quanto tem determinado,De longe os meios dá convenientes,Por onde vem a ef eito o fim fadado,Influiu piedosos acidentesDe afeição em Monçaide, que guardadoEstava para dar ao Gama aviso,E merecer por isso o Paraíso.
|
6 | Este, de quem se os Mouros não guardavam,Por ser Mouro como eles, antes eraParticipante em quanto maquinavam,A tenção lhe descobre torpe e fera.Muitas vezes as naus que longe estavamVisita, o com piedade consideraO dano, sem razão, que se lhe ordenaPela maligna gente Sarracena.
|
7 | Informa o cauto Gama das armadasQue de Arábica Meca vêm cada ano,Que agora são dos seus tão desejadas,Para ser instrumento deste dano.Diz-lhe que vêm de gente carregadas,E dos trovões horrendos de Vulcano,E que pode ser delas oprimido,Segundo estava mal apercebido.
|
8 | O Gama, que também consideravaO tempo, que para a partida o chama,E que despacho já não esperavaMelhor do Rei, que os Maumetanos ama,Aos feitores, que em terra estão, mandavaQue se tornem às naus; e por que a famaDesta súbita vinda os não impeça,Lhe manda que a fizessem escondida.
|
9 | Porém não tardou muito que, voando,Um rumor não soasse com verdade:Que foram presos os feitores, quandoForam sentidos vir-se da cidade.Esta fama as orelhas penetrandoDo sábio Capitão, com brevidadeFaz represaria nuns, que às naus vieramA vender a pedraria que trouxeram.
|
10 | Eram estes antigos mercadoresRicos em Calecu, e conhecidos;Da falta deles, logo entre os melhoresSentido foi que estão no mar retidos.Mas já nas naus os bons trabalhadoresVolvem o cabrestante, e repartidosPelo trabalho, uns puxam pela amarra,Outros quebram com o peito duro a barra;
|
11 | Outros pendem da verga, e já desatamA vela, que com grita se soltava,Quando com maior grita ao Rei relatamA pressa com que a armada se levava.As mulheres e filhos que se matamDaqueles que vão presos, onde estavaO Samorim, se queixam que perdidosUns têm os pais, as outras os maridos.
|
12 | Manda logo os feitores LusitanosCom toda sua fazenda livrementeApesar dos inimigos Maumetanos,Por que lhe torne a sua presa gente.Desculpas manda o Rei de seus enganos;Recebe o Capitão de melhor menteOs presos que as desculpas, e tornandoAlguns negros, se parte as velas dando.
|
13 | Parte-se costa abaixo, porque entendeQue em vão com o Rei gentio trabalhavaEm querer dele paz, a qual pretendePor firmar o comércio que tratava.Mas como aquela terra, que se estendePela Aurora, sabida já deixava,Com estas novas torna à pátria cara,Certos sinais levando do que achara.
|
14 | Leva alguns Malabares, que tomouPor força, dos que o Samorim mandaraQuando os presos feitores lhe tornou;Leva pimenta ardente, que comprara;A seca flor de Banda não ficou,A noz, e o negro cravo, que faz claraA nova ilha Maluco, com a canela,Com que Ceilão é rica, ilustre e bela.
|
15 | Isto tudo lhe houvera a diligênciaDe Monçaide fiel, que também leva,Que, inspirado de angélica influência,Quer no livro de Cristo que se escreva.Ó ditoso Africano, que a clemênciaDivina assim tirou de escura treva,E tão longe da pátria achou maneiraPara subir à pátria verdadeira!
|
16 | Apartadas assim da ardente costaAs venturosas naus, levando a proaPara onde a Natureza tinha postaA meta Austrina da esperança boa,Levando alegres novas e respostaDa parte Oriental para Lisboa,Outra vez cometendo os duros medosDo mar incerto, tímidos e ledos;
|
17 | O prazer de chegar à pátria cara,A seus penates caros e parentes,Para contar a peregrina e raraNavegação, os vários céus e gentes;Vir a lograr o prémio, que ganharaPor tão longos trabalhos e acidentes,Cada um tem por gosto tão perfeito,Que o coração para ele é vaso estreito.
|
18 | Porém a deusa Cípria, que ordenadaEra para favor dos LusitanosDo Padre eterno, e por bom génio dada,Que sempre os guia já de longos anos;A glória por trabalhos alcançada,Satisfação de bem sofridos danos,Lhe andava já ordenando, e pretendiaDar-lhe nos mares tristes alegria.
|
19 | Depois de ter um pouco revolvidoNa mente o largo mar que navegaram,Os trabalhos, que pelo Deus nascidoNas Anfióneas Tebas se causaram;Já trazia de longe no sentido,Para prémio de quanto mal passaram,Buscar-lhe algum deleite, algum descansoNo Reino de cristal líquido e manso;
|
20 | Algum repouso, enfim, com que pudesseRefocilar a lassa humanidadeDos navegantes seus, como interesseDo trabalho que encurta a breve idade.Parece-lhe razão que conta desseA seu filho, por cuja potestadeOs Deuses faz descer ao vil terrenoE os humanos subir ao céu sereno.
|
21 | Isto bem revolvido, determinaDe ter-lhe aparelhada, lá no meioDas águas, alguma ínsula divina,Ornada de esmaltado e verde arreio;Que muitas tem no reino, que confinaDa mãe primeira com o terreno seio,Afora as que possui soberanasPara dentro das portas Herculanas.
|
22 | Ali quer que as aquáticas donzelasEsperem os fortíssimos barões,Todas as que têm título de belas,Glória dos olhos, dor dos corações,Com danças e coreias, porque nelasInfluirá secretas afeições,Para com mais vontade trabalharemDe contentar, a quem se afeiçoaram.
|
23 | Tal manha buscou já, para que aqueleQue de Anquises pariu, bem recebidoFosse no campo que a bovina peleTomou de espaço, por subtil partido.Seu filho vai buscar, porque só neleTem todo seu poder, fero Cupido,Que assim como naquela empresa antigaAjudou já, nestoutra a ajude e siga.
|
24 | No carro ajunta as aves que na vidaVão da morte as exéquias celebrando,E aquelas em que já foi convertidaPerístera, as boninas apanhando.Em derredor da Deusa já partida,No ar lascivos beijos se vão dando.Ela, por onde passa, o ar e o ventoSereno faz, com brando movimento.
|
25 | Já sobre os Idálios montes pende,Onde o filho frecheiro estava entãoAjuntando outros muitos, que pretendeFazer uma famosa expediçãoContra o mundo rebelde, por que emendeErros grandes, que há dias nele estão,Amando coisas que nos foram dadas,Não para ser amadas, mas usadas.
|
26 | Via Acteon na caça tão austero,De cego na alegria bruta, insana,Que por seguir um feio animal fero,Foge da gente e bela forma humana;E por castigo quer, doce e severo,Mostrar-lhe a formosura de Diana;E guarde-se não seja ainda comidoDesses cães que agora ama, e consumido.
|
27 | E vê do mundo todo os principais,Que nenhum no bem público imagina;Vê neles que não têm amor a maisQue a si somente, e a quem Filáucia ensina.Vê que esses que frequentam os reaisPaços, por verdadeira e sã doutrinaVendem adulação, que mal consenteMondar-se o novo trigo florescente.
|
28 | Vê que aqueles que devem à pobrezaAmor divino e ao povo caridade,Amam somente mandos e riqueza,Simulando justiça e integridade.Da feia tirania e de asperezaFazem direito e vã severidade:Leis em favor do Rei se estabelecem,As em favor do povo só perecem.
|
29 | Vê, enfim, que ninguém ama o que deve,Senão o que somente mal deseja;Não quer que tanto tempo se releveO castigo, que duro e justo seja.Seus ministros ajunta, por que leveExércitos conformes à peleja,Que espera ter com a mal regida gente,Que lhe não for agora obediente.
|
30 | Muitos destes meninos voadoresEstão em várias obras trabalhando:Uns amolando ferros passadores,Outros ásteas de setas delgaçando;Trabalhando, cantando estão de amores,Vários casos em verso modulando,Melodia sonora e concertada,Suave a letra, angélica a soada.
|
31 | Nas frágoas imortais, onde forjavamPara as setas as pontas penetrantes,Por lenha corações ardendo estavam,Vivas entranhas ainda palpitantes.As águas onde os ferros temperavam,Lágrimas são de míseros amantes;A viva f lama, o nunca morto lume,Desejo é só que queima, e não consume.
|
32 | Alguns exercitando a mão andavamNos duros corações da plebe rude;Crebros suspiros pelo ir soavamDos que feridos vão da seta aguda.Formosas Ninfas são as que curavamAs chagas recebidas cuja ajudaNão somente dá vida aos mal feridos,Mas põe em vida os ainda não nascidos.
|
33 | Formosas são algumas e outras feias,Segundo a qualidade for das chagas;Que o veneno espalhado pelas veiasCuram-no às vezes ásperas triagas.Alguns ficam ligados em cadeias,Por palavras subtis de sábias magas:Isto acontece às vezes, quando as setasAcertam de levar ervas secretas.
|
34 | Destes tiros assim desordenados,Que estes moços mal destros vão tirando,Nascem amores mil desconcertadosEntre o povo ferido miserando;E tamboril nos heróis de altos estadosExemplos mil se vêem de amor nefando,Qual o das moças Bíbli e Cinireia,Um mancebo de Assíria, um de Judeia.
|
35 | E vós, ó poderosos, por pastorasMuitas vezes ferido o peito vedes;E por baixos e rudos, vós, senhoras,Também vos tomam nas Vulcâneas redes.Uns esperando andais noturnas horas,Outros subis telhados e paredes:Mas eu creio que deste amor indinoÉ mais culpa a da mãe que a do menino.
|
36 | Mas já no verde prado o carro levePunham os brancos cisnes mansamente,E Dione, que as rosas entro a neveNo rosto traz, descia diligente.O frecheiro, que contra o céu se atreve,A recebê-la vem, ledo e contente;Vêm todos os Cupidos servidoresBeijar a mão à Deusa dos amores.
|
37 | Ela, por que não gaste o tempo em vão,Nos braços tendo o filho, confiadaLhe diz: Amado filho, em cuja mãoToda minha potência está fundada;Filho, em quem minhas forças sempre estão;Tu, que as armas Tifeias tens em nada,A socorrer-me a tua potestadeMe triz especial necessidade.
|
38 | Bem vês as Lusitânicas fadigas,Que eu já de muito longe favoreço,Porque das Parcas sei, minhas amigas,Que me hão de venerar e ter em preço.E, porque tanto imitam as antigasObras de meus Romanos, me ofereçoA lhe dar tanta ajuda, em quanto posso,A quanto se estender o poder nosso.
|
39 | E porque das insídias do odiosoBaco foram na Índia molestados,E das injúrias sós do mar undosoPuderam mais ser mortos que cansados,No mesmo mar, que sempre temerosoLhe foi, quero que sejam repousados,Tomando aquele prémio e doce glóriaDo trabalho, que faz clara a memória.
|
40 | E para isso queria que, feridasAs filhas de Nereu, no ponto fundo,De amor dos Lusitanos incendidas,Que vêm de descobrir o novo mundo,Todas numa ilha juntas e subidas,Ilha, que nas entranhas do profundoOceano terei aparelhada,De dons de Flora e Zéfiro adornada;
|
41 | Ali, com mil refrescos e manjares,Com vinhos odoríferos e rosas,Em cristalinos paços singularesFormosos leitos, e elas mais formosas;Enfim, com mil deleites não vulgares,Os esperem as Ninfas amorosas,De amor feridas, para lhes entregaremQuanto delas os olhos cobiçarem.
|
42 | Quero que haja no reino Netunino,Onde eu nasci, progénie forte e bela,E tome exemplo o mundo vil, malino,Que contra tua potência se rebela,Por que entendam que muro adamantino,Nem triste hipocrisia val contra ela:Mal haverá na terra quem se guarde,Se teu fogo imortal nas águas arde.
|
43 | Assim Vénus propôs, e o filho inieo,Para lhe obedecer, já se apercebe:Manda trazer o arco ebúrneo rico,Onde as setas de ponta de ouro embebe.Com gesto ledo a Cípria, e impudico,Dentro no carro o filho seu recebe;A rédea larga às aves, cujo cantoA Factôntea morte chorou tanto.
|
44 | Mas diz Cupido, que era necessáriaUma famosa e célebre terceira,Que, posto que mil vezes lhe é contrária,Outras muitas a tem por companheira:A Deusa Giganteia, temerária,Jactante, mentirosa, e verdadeira,Que com cem olhos vê, e por onde voa,O que vê, com mil bocas apregoa.
|
45 | Vão-a buscar, e mandam adiante,Que celebrando vá com tuba claraOs louvores da gente navegante,Mais do que nunca os d'outrem celebrara.Já murmurando a Fama penetrantePelas fundas cavernas se espalhara:Fala verdade, havida por verdade,Que junto a Deusa traz Credulidade.
|
46 | O louvor grande, o rumor excelenteNo coração dos Deuses, que indignadosForam por Baco contra a ilustre gente,Mudando, os fez um pouco afeiçoados.O peito feminil, que levementeMuda quaisquer propósitos tomados,Já julga por mau zelo e por cruezaDesejar mal a tanta fortaleza.
|
47 | Despede nisto o fero moço as setasUma após outra: geme o mar com os tiros;Direitas pelas ondas inquietasAlgumas vão, e algumas fazem giros;Caem as Ninfas, lançam das secretasEntranhas ardentíssimos suspiros;Cai qualquer, sem ver o vulto que ama:Que tanto, como a vista, pode a fama.
|
48 | Os cornos ajuntou da ebúrnea luaCom força o moço indómito excessiva,Que Tethys quer ferir mais que nenhuma,Porque mais que nenhuma lhe era esquiva.Já não fica na aljava seta alguma,Nem nos equóreos campos Ninfa viva;E se feridas ainda estão vivendo,Será para sentir que vão morrendo.
|
49 | Dai lugar, altas e cerúleas ondas,Que, vedes, Vénus traz a medicina,Mostrando as brancas velas e redondas,Que vêm por cima da água Netunina.Para que tu recíproco respondas,Ardente Amor, à flama feminina,É, forçado que a pudicícia honestaFaça quanto lhe Vénus amoesta.
|
50 | Já todo o belo coro se aparelhaDas Nereidas, e junto caminhavaEm coreias gentis, usança velha,Para a ilha, a que Vénus as guiava.Ali a formosa Deusa lhe aconselhaO que ela fez mil vezes, quando amava.Elas, que vão do doce amor vencidas,Estão a seu conselho oferecidas.
|
51 | Cortando vão as naus a larga viaDo mar ingente para a pátria amada,Desejando prover-se de água fria,Para a grande viagem prolongada,Quando juntas, com súbita alegria,Houveram vista da ilha namorada,Rompendo pelo céu a mãe formosaDe Menónio, suave e deleitosa.
|
52 | De longe a Ilha viram fresca e bela,Que Vénus pelas ondas lha levava(Bem como o vento leva branca vela)Para onde a forte armada se enxergava;Que, por que não passassem, sem que nelaTomassem porto, como desejava,Para onde as naus navegam a moviaA Acidália, que tudo enfim podia.
|
53 | Mas firme a fez e imóvel, como viuQue era dos Nautas vista e demandada;Qual ficou Delos, tanto que pariuLatona Febo e a Deusa à caça usada.Para lá logo a proa o mar abriu,Onde a costa fazia uma enseadaCurva e quieta, cuja branca areia,Pintou de ruivas conchas Citereia.
|
54 | Três formosos outeiros se mostravamErguidos com soberba graciosa,Que de gramíneo esmalte se adornavam..Na formosa ilha alegre e deleitosa;Claras fontes o límpidas manavamDo cume, que a verdura tem viçosa;Por entre pedras alvas se derivaA sonorosa Ninfa fugitiva.
|
55 | Num vale ameno, que os outeiros fende,Vinham as claras águas ajuntar-se,Onde uma mesa fazem, que se estendeTão bela quanto pode imaginar-se;Arvoredo gentil sobre ela pende,Como que pronto está para afeitar-se,Vendo-se no cristal resplandecente,Que em si o está pintando propriamente.
|
56 | Mil árvores estão ao céu subindo,Com pomos odoríferos e belos:A laranjeira tem no fruto lindoA cor que tinha Dafne nos cabelos;Encosta-se no chão, que está caindo,A cidreira com os pesos amarelos;Os formosos limões ali, cheirando,Estão virgíneas tetas imitando.
|
57 | As árvores agrestes que os outeirosTêm com frondente coma enobrecidos,Alemos são de Alcides, e os loureirosDo louro Deus amados e queridos;Mirtos de Citereia, com os pinheirosDe Cibele, por outro amor vencidos;Está apontando o agudo ciparisoPara onde é posto o etéreo paraíso.
|
58 | Os dons que dá Pomona, ali NaturaProduz diferentes nos sabores,Sem ter necessidade de cultura,Que sem ela se dão muito melhores:As cerejas purpúreas na pintura,As amoras, que o nome têm de amores,O pomo que da pátria Pérsia veio,Melhor tornado no terreno alheio.
|
59 | Abre a romã, mostrando a rubicundaCor, com que tu, rubi, teu preço perdes;Entre os braços do ulmeiro está a jocundaVide, com uns cachos roxos e outros verdes;E vós, se na vossa árvore fecunda,Peras piramidais, viver quiserdes,Entregai-vos ao dano, que, com os bicos,Em vós fazem os pássaros inicos.
|
60 | Pois a tapeçaria bela e fina,Com que se cobre o rústico terreno,Faz ser a de Aqueménia menos diria,Mas o sombrio vale mais ameno.Ali a cabeça a flor Cifísia inclinaSôbolo tanque lúcido e sereno;Floresce o filho e neto de Ciniras,Por quem tu, Deusa Páfia, inda suspiras.
|
61 | Para julgar, difícil coisa fora,No céu vendo e na terra as mesmas cores,Se dava às flores cor a bela Aurora,Ou se lha dão a ela as belas flores.Pintando estava ali Zéfiro e FloraAs violas da cor dos amadores;O lírio roxo, a fresca rosa bela,Qual reluz nas faces da donzela;
|
62 | A cândida cecém, das matutinasLágrimas rociada, e a manjarona.Vêem-se as letras nas flores Hiacintinas,Tão queridas do filho de Latona.Bem se enxerga nos pomos e boninasQue competia Cloris com Pomona.Pois se as aves no ar cantando voam,Alegres animais o chão povoam.
|
63 | Ao longo da água o níveo cisne canta,Responde-lhe do ramo filomela;Da sombra de seus cornos não se espantaActeon, n'água cristalina e bela;Aqui a fugace lebre se levantaDa espessa mata, ou tímida gazela;Ali no bico traz ao caro ninhoO mantimento o leve passarinho.
|
64 | Nesta frescura tal desembarcavamJá das naus os segundos Argonautas,Onde pela floresta se deixavamAndar as belas Deusas, como incautas.Algumas doces cítaras tocavam,Algumas harpas e sonoras flautas,Outras com os arcos de ouro se fingiamSeguir os animais, que não seguiam.
|
65 | Assim lhe aconselhara a mestra experta;Que andassem pelos campos espalhadas;Que, vista dos barões a presa incerta,Se fizessem primeiro desejadas.Algumas, que na forma descobertaDo belo corpo estavam confiadas,Posta a artificiosa formosura,Nuas lavar-se deixam na água pura,
|
66 | Mas os fortes mancebos, que na praiaPunham os pés, de terra cobiçosos,Que não há nenhum deles que não saiaDe acharem caça agreste desejosos,Não cuidam que, sem laço ou redes, caiaCaça naqueles montes deleitosos,Tão suave, doméstica e benigna,Qual ferida lha tinha já Ericina.
|
67 | Alguns, que em espingardas e nas bestas,Para ferir os cervos se fiavam,Pelos sombrios matos e florestasDeterminadamente se lançavam:Outros, nas sombras, que de as altas sestasDefendem a verdura, passeavamAo longo da água que, suave e queda,Por alvas pedras corre à praia leda.
|
68 | Começam de enxergar subitamentePor entre verdes ramos várias cores,Cores de quem a vista julga e senteQue não eram das rosas ou das flores,Mas da lã fina e seda diferente,Que mais incita a força dos amores,De que se vestem as humanas rosas,Fazendo-se por arte mais formosas.
|
69 | Dá Veloso espantado um grande grito:Senhores, caça estranha, disse, é esta!Se ainda dura o Gentio antigo rito,A Deusas é sagrada esta floresta.Mais descobrimos do que humano espíritoDesejou nunca; e bem se manifestaQue são grandes as coisas e excelentes,Que o mundo encobre aos homens imprudentes.
|
70 | Sigamos estas Deusas, e vejamosSe fantásticas são, se verdadeiras.Isto dito, velozes mais que gamos,Se lançam a correr pelas ribeiras.Fugindo as Ninfas vão por entre os ramos,Mas, mais industriosas que ligeiras,Pouco e pouco sorrindo e gritos dando,Se deixam ir dos galgos alcançando.
|
71 | De uma os cabelos de ouro o vento levaCorrendo, e de outra as fraldas delicadas;Acende-se o desejo, que se cevaNas alvas carnes súbito mostradas;Uma de indústria cai, e já releva,Com mostras mais macias que indignadas,Que sobre ela, empecendo, também caiaQuem a seguiu pela arenosa praia.
|
72 | Outros, por outra parte, vão toparCom as Deusas despidas, que se lavam:Elas começam súbito a gritar,Como que assalto tal não esperavam.Umas, fingindo menos estimarA vergonha que a força, se lançavamNuas por entre o mato, aos olhos dandoO que às mãos cobiçosas vão negando.
|
73 | Outra, como acudindo mais depressaA vergonha da Deusa caçadora,Esconde o corpo n'água; outra se apressaPor tomar os vestidos, que tem fora.Tal dos mancebos há, que se arremessa,Vestido assim e calçado (que, coa moraDe se despir, há medo que ainda tarde)A matar na água o fogo que nele arde.
|
74 | Qual cão de caçador, sagaz e ardido,Usado a tomar na água a ave ferida,Vendo no rosto o férreo cano erguidoPara a garcenha ou pata conhecida,Antes que soe o estouro, mal sofridoSalta n'água, e da presa não duvida,Nadando vai e latindo: assim o manceboRemete à que não era irmã de Febo.
|
75 | Leonardo, soldado bem disposto,Manhoso, cavaleiro e namorado,A quem amor não dera um só desgosto,Mas sempre fora dele maltratado,E tinha já por firme pressupostoSer com amores mal afortunado,Porém não que perdesse a esperançaDe ainda poder seu fado ter mudança,
|
76 | Quis aqui sua ventura, que corriaApós Efire, exemplo de beleza,Que mais caro que as outras dar queriaO que deu para dar-se a natureza.Já cansado correndo lhe dizia:Ó formosura indigna de aspereza,Pois desta vida te concedo a palma,Espera um corpo de quem levas a alma.
|
77 | Todas de correr cansam, Ninfa pura,Rendendo-se à vontade do inimigo,Tu só de mi só foges na espessura?Quem te disse que eu era o que te sigo?Se to tem dito já aquela ventura,Que em toda a parte sempre anda comigo,Ó não na creias, porque eu, quando a cria,Mil vezes cada hora me mentia.
|
78 | Não canses, que me cansas: e se queresFugir-me, por que não possa tocar-te,Minha ventura é tal que, ainda que esperes,Ela fará que não possa alcançar-te.Espora; quero ver, se tu quiseres,Que subtil modo busca de escapar-te,E notarás, no fim deste sucesso,Tra la spica e la man, qual muro è messo.
|
79 | Ó não me fujas! Assim nunca o breveTempo fuja de tua formosura!Que, só com refrear o passo leve,Vencerás da fortuna a força dura.Que Imperador, que exército se atreveA quebrantar a fúria da ventura,Que, em quanto desejei, me vai seguindo,O que tu só farás não me fugindo!
|
80 | Pões-te da parte da desdita minha?Fraqueza é dar ajuda ao mais potente.Levas-me um coração, que livre tinha?Solta-me, e correrás mais levemente.Não te carrega essa alma tão mesquinha,Que nesses fios de ouro reluzenteAtada levas? Ou, depois de presa,Lhe mudaste a ventura, e menos pesa?
|
81 | Nesta esperança só te vou seguindo:Que, ou tu não sofrerás o peso dela,Ou na virtude de teu gesto lindoLhe mudarás a triste e dura estrela:E se se lhe mudar, não vás fugindo,Que Amor te ferirá, gentil donzela,E tu me esperarás, se Amor te fere:E se me esperas, não há mais que espere.
|
82 | Já não fugia a bela Ninfa, tantoPor se dar cara ao triste que a seguia,Como por ir ouvindo o doce canto,As namoradas mágoas que dizia.Volvendo o rosto já sereno e santo,Toda banhada em riso e alegria,Cair se deixa aos pés do vencedor,Que todo se desfaz em puro amor.
|
83 | Ó que famintos beijos na floresta,E que mimoso choro que soava!Que afagos tão suaves, que ira honesta,Que em risinhos alegres se tornava!O que mais passam na manhã, e na sesta,Que Vénus com prazeres inflamava,Melhor é experimentá-lo que julgá-lo,Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo.
|
84 | Desta arte enfim conformes já as formosasNinfas com os seus amados navegantes,Os ornam de capelas deleitosasDe louro, e de ouro, e flores abundantes.As mãos alvas lhes davam como esposas;Com palavras formais e estipulantesSe prometem eterna companhiaEm vida e morte, de honra e alegria.
|
85 | Uma delas maior, a quem se humilhaTodo o coro das Ninfas, e obedece,Que dizem ser de Celo e Vesta filha,O que no gesto belo se parece,Enchendo a terra e o mar de maravilha,O Capitão ilustre, que o merece,Recebe ali com pompa honesta e régia,Mostrando-se senhora grande e egrégia.
|
86 | Que, depois de lhe ter dito quem era,Com um alto exórdio, de alta graça ornado,Dando-lhe a entender que ali vieraPor alta influição do imóvel fado,Para lhe descobrir da unida esferaDa terra imensa, e mar não navegado,Os segredos, por alta profecia,O que esta sua nação só merecia,
|
87 | Tomando-o pela mão, o leva e guiaPara o cume dum monte alto e divino,No qual uma rica fábrica se erguiaDe cristal toda, e de ouro puro e fino.A maior parte aqui passam do diaEm doces jogos e em prazer contino:Ela nos paços logra seus amores,As outras pelas sombras entre as flores.
|
88 | Assim a formosa e a forte companhiaO dia quase todo estão passando,Numa alma, doce, incógnita alegria,Os trabalhos tão longos compensando.Porque dos feitos grandes, da ousadiaForte e famosa, o mundo está guardandoO prémio lá no fim, bem merecido,Com fama grande e nome alto e subido.
|
89 | Que as Ninfas do Oceano tão formosas,Tethys, e a ilha angélica pintada,Outra coisa não é que as deleitosasHonras que a vida fazem sublimada.Aquelas proeminências gloriosas,Os triunfos, a fronte coroadaDe palma e louro, a glória e maravilha:Estes são os deleites desta ilha.
|
90 | Que as imortalidades que fingiaA antiguidade, que os ilustres ama,Lá no estelante Olimpo, a quem subiaSobre as asas ínclitas da Fama,Por obras valorosas que fazia,Pelo trabalho imenso que se chamaCaminho da virtude alto e fragoso,Mas no fim doce, alegre e deleitoso:
|
91 | Não eram senão prémios que repartePor feitos imortais e soberanosO mundo com os varões, que esforço e arteDivinos os fizeram, sendo humanos.Que Júpiter, Mercúrio, Febo e Marte,Eneias e Quirino, e os dois Tebanos,Ceres, Palas e Juno, com Diana,Todos foram de fraca carne humana.
|
92 | Mas a Fama, trombeta de obras tais,Lhe deu no mundo nomes tão estranhosDe Deuses, Semideuses imortais,Indígetes, Heróicos e de Magnos.Por isso, ó vós que as famas estimais,Se quiserdes no mundo ser tamanhos,Despertai já do sono do ócio ignavo,Que o ânimo de livre faz escravo.
|
93 | E ponde na cobiça um freio duro,E na ambição também, que indignamenteTomais mil vezes, e no torpe e escuroVício da tirania infame e urgente;Porque essas honras vãs, esse ouro puroVerdadeiro valor não dão à gente:Melhor é, merecê-los sem os ter,Que possuí-los sem os merecer.
|
94 | Ou dai na paz as leis iguais, constantes,Que aos grandes não dêem o dos pequenos;Ou vos vesti nas armas rutilantes,Contra a lei dos inimigos Sarracenos:Fareis os Reinos grandes e possantes,E todos tereis mais, o nenhum menos;Possuireis riquezas merecidas,Com as honras, que ilustram tanto as vidas.
|
95 | E fareis claro o Rei, que tanto amais,Agora com os conselhos bem cuidados,Agora com as espadas, que imortaisVos farão, como os vossos já passados;Impossibilidades não façais,Que quem quis sempre pôde; e numeradosSereis entre os Heróis esclarecidos,E nesta Ilha de Vénus recebidos.
FIM. |