Luís Vaz de Camões
1524/25 -1580
Os Lusíadas
Canto VIII
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Canto oitavo.
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1 | Na primeira figura se detinhaO Catual que vira estar pintada,Que por divisa um ramo na mão tinha,A barba branca, longa e penteada:Quem era, e por que causa lhe convinhaA divisa, que tem na mão tomada?Paulo responde, cuja voz discretaO Mauritano sábio lhe interpreta.
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2 | Estas figuras todas que aparecem,Bravos em vista e feros nos aspectos,Mais bravos e mais feros se conhecem,Pela fama, nas obras e nos feitos:Antigos são, mas ainda resplandecemColo nome, entre os engenhos mais perfeitoEste que vês é Luso, donde a famaO nosso Reino Lusitânia chama.
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3 | Foi filho e companheiro do Tebano,Que tão diversas partes conquistou;Parece vindo ter ao ninho HispanoSeguindo as armas, que contino usou;Do Douro o Guadiana o campo ufano,Já dito Elísio, tanto o contentou,Que ali quis dar aos já cansados ossosEterna sepultura, e nome aos nossos.
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4 | O ramo que lhe vês para divisa,O verde tirso foi de Baco usado;O qual à nossa idade amostra e avisaQue foi seu companheiro e filho amido.Vês outro, que do Tejo a terra pisa,Depois de ter tão longo mar arado,Onde muros perpétuos edifica,E templo a Palas, que em memória fica?
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5 | Ulisses é o que faz a santa casaA Deusa, que lhe dá língua facunda;Que, se lá na Ásia Tróia insigne abrasa,Cá na Europa Lisboa ingente funda.- Quem será estoutro cá, que o campo arrasaDe mortos, com presença furibunda?Grandes batalhas tem desbaratadas,Que as águias nas bandeiras tem pintadas.
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6 | Assim o Gentio diz.Responde o Gama:- Este que vês, pastor já foi de gado;Viriato sabemos que se chama,Destro na lança mais que no cajado;Injuriada tem de Roma a f ama,Vencedor invencível afamado;Não tem com ele, não, nem ter puderamO primor que com Pirro já tiveram.
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7 | Com força, não; com manha vergonhosa,A vida lhe tiraram que os espanta:Que o grande aperto, em gente ainda que honrosa,As vezes leis magnânimas quebranta.Outro está aqui que, contra a pátria irosa,Degradado, conosco se alevanta:Escolheu bem com quem se alevantasse,Para que eternamente se ilustrasse.
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8 | Vês? conosco também vence as bandeirasDessas aves de Júpiter validas;Que já naquele tempo as mais GuerreirasGentes de nós souberam ser vencidas.Olha tão subtis artes e maneiras,Para adquirir os povos, tão fingidas,A fatídica Cerva que o avisa:Ele é Sertório, e ela a sua divisa.
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9 | Olha estoutra bandeira, e vê pintadoO grã progenitor dos Reis primeiros.Nós Úngaro o fazemos, porém nadoCrêem ser em Lotaríngia os estrangeiros.Depois de ter com os Mouros superado,Galegos e Leoneses cavaleiros,A casa Santa passa o santo Henrique,Por que o tronco dos Reis se santifique.
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10 | Quem é, me diz, este outro que me espanta,(Pergunta o Malabar maravilhado)Que tantos esquadrões, que gente tanta,Com tão pouca, tem roto e destroçado?Tantos muros aspérrimos quebranta,Tantas batalhas dá, nunca cansado,Tantas coroas tem por tantas partesA seus pés derribadas, e estandartes!
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11 | Este é o primeiro Afonso, disse o Gama,Que todo Portugal aos Mouros toma;Por quem, no Estígio lago, jura a FamaDe mais não celebrar nenhum de Roma.Este é aquele zeloso a quem Deus ama,Com cujo braço o Mouro inimigo doma,Para quem de seu Reino abaixa os muros,Nada deixando já para os futuros,
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12 | Se César, se Alexandre Rei, tiveramTão pequeno poder, tão pouca gente,Contra tantos inimigos quantos eramOs que desbaratava este excelente,Não creias que seus nomes se estenderaCom glórias imortais tão largamente;Mas deixa os feitos seus inexplicáveis,Vê que os de seus vassalos são notáveis.
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13 | Este que vês olhar com gesto iradoPara o rompido aluno mal sofrido,Dizendo-lhe que o exército espalhadoRecolha, e torne ao campo defendido;Torna o moço do velho acompanhado,Que vencedor o torna de vencido:Egas Moniz se chama o forte velho,Para leais vassalos claro espelho.
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14 | Vê-lo cá vai com os filhos a entregar-se,A corda ao colo, nu de seda e pano,Porque não quis o moço sujeitar-se,Como ele prometera, ao Castelhano.Fez com siso e promessas levantar-seO cerco, que já estava soberano;Os filhos e mulher obriga à pena:Para que o senhor salve, a si condena.
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15 | Não fez o Cônsul tanto, que cercadoFoi nas forças Caudinas, de ignorante,Quando a passar por baixo foi forçadoDo Samnítico jugo triunfante.Este, pelo seu povo injuriado,A si se entrega só, firme e constante;Estoutro a si, e os filhos naturais,E a consorte sem culpa, que dói mais.
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16 | Vês este que, saindo da cilada,Dá sobre o Rei que cerca a vila forte?Já o Rei tem preso e a vila descercada:Ilustre feito, digno de Mavorte!Vê-lo cá vai pintado nesta armada,No mar também aos Mouros dando a morto,Tomando-lhe as galés, levando a glóriaDa primeira marítima vitória.
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17 | É, Dom Fuas Roupinho, que na terraE no mar resplandece juntamente,Com o fogo que acendeu junto da serraDe Abila, nas galés da Maura gente.Olha como, em tão justa e santa guerra,De acabar pelejando está contente:Das mãos dos Mouros entra a feliz alma,Triunfando, nos céus, com justa palma.
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18 | Não vês um ajuntamento, de estrangeiroTrajo, sair da grande armada nova,Que ajuda a combater o Rei primeiroLisboa, de si dando santa prova?Olha Henrique, famoso cavaleiro,A palma que lhe nasce junto à cova.Por eles mostra Deus milagre visto:Germanos são os mártires de Cristo.
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19 | Um Sacerdote vê brandindo a espadaContra Arronches, que toma, por vingançaDe Leiria, que de antes foi tomadaPor quem por Mafamede enresta a lança:É Teotónio, Prior.Mas vê cercadaSantarém, e verás a segurançaDa figura nos muros, que primeiraSubindo, ergueu das Quinis a bandeira.
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20 | Vê-lo cá, donde Sancho desbarataOs Mouros de Vandália em fera guerra;Os inimigos rompendo, o alferes mataE o Hispálico pendão derriba em terra:Mem Moniz é, que em si o valor retrata,Que o sepulcro do pai com os ossos cerra,Digno destas bandeiras, pois sem faltaA contrária derriba e a sua exalta.
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21 | Olha aquele que desce pela lança?Com as duas cabeças dos vigias,Onde a cilada esconde, com que alcançaA cidade por manhas e ousadias.Ela por armas toma a semelhançaDo cavaleiro, que as cabeças friasNa mão levava (feito nunca feito!)Giraldo Sem-pavor é o forte peito.
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22 | Não vês um Castelhano, que agravadoDe Afonso nono rei, pelo ódio antigoDos de Lara, com os Mouros é deitado,De Portugal fazendo-se inimigo?Abrantes vila toma, acompanhadoDos duros infiéis que traz consigo.Mas vê que um Português com pouca genteO desbarata e o prende ousadamente.
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23 | Martim Lopes se chama o cavaleiro,Que destes levar pode a palma e o louro.Mas olha um Eclesiástico guerreiro,Que em lança de aço torna o Bago de ouro.Vê-lo entre os duvidosos tão inteiroEm não negar batalha ao bravo Mouro;Olha o sinal no céu que lhe aparece,Com que nos poucos seus o esforço cresce.
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24 | Vós? vão os Reis de Córdova e SevilhaRotos, com os outros dois, e não de espaço.Rotos? mas antes mortos, maravilhaFeita de Deus, que não de humano braço.Vês? já a vila de Alcáçare se humilha,Sem lhe valer defesa, ou muro de aço,A Dom Mateus, o Bispo de Lisboa,Que a coroa da palma ali coroa.
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25 | Olha um Mestre que desce de Castela,Português de nação, como conquistaA terra dos Algarves, e já nelaNão acha quem por armas lhe resista;Com manha, esforço, e com benigna estrela,Vilas, castelos toma à escala vista.Vês Tavila tomada aos moradores,Em vingança dos sete caçadores!
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26 | Vês? com bélica astúcia ao Mouro ganhaSilves, que ele ganhou com força ingente:É Dom Paio Correia, cuja manhaE grande esforço faz inveja à gente.Mas não passes os três que em França e EspanhaSe fazem conhecer perpetuamenteEm desafios, justas e torneios,Nelas deixando públicos troféus.
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27 | Vê-los, com o nome vêm de aventureirosA Castela, onde o preço sós levaramDos jogos de Belona verdadeiros,Que com dano de alguns se exercitaram.Vê mortos os soberbos cavaleiros,Que o principal dos três desafiaram,Que Gonçalo Ribeiro se nomeia,Que pode não temer a lei Leteia.
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28 | Atenta num, que a fama tanto estende,Que de nenhum passado se contenta;Que a pátria, que de um fraco fio pende,Sobre seus duros ombros a sustenta.Não no vês tinto de ira, que reprendeA vil desconfiança inerte e lentaDo povo, e faz que tome o doce freioDe Rei seu natural, e não de alheio?
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29 | Olha: por seu conselho e ousadiaDe Deus guiada só, e de santa estrela,Só pode o que impossível parecia:Vencer o povo ingente de Castela.Vês, por indústria, esforço e valentia,Outro estrago e vitória clara e bela,Na gente, assim feroz como infinita,Que entre o Tarteso e Goadiana habita?
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30 | Mas não vês quase já desbaratadoO poder Lusitano, pela ausênciaDo Capitão devoto, que, apartadoOrando invoca a suma e trina Essência?Vê-lo com pressa já dos seus achado,Que lhe dizem que falta resistênciaContra poder tamanho, e que viesse,Por que consigo esforço aos fracos desse?
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31 | Mas olha com que santa confiança,- Que inda não era tempo, - respondia,Como quem tinha em Deus a segurariaDa vitória que logo lhe daria.Assim Pompílio, ouvindo que a possançaDos inimigos a terra lhe corria,A quem lhe a dura nova estava dando,-Pois eu, responde, estou sacrificando. -
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32 | Se quem com tanto esforço em Deus se atreve,Ouvir quiseres como se nomeia,Português Cipião chamar-se deve;Mas mais de Dom Nuno Alvares se arreia:Ditosa pátria que tal filho teve!Mas antes pai, que enquanto o Sol rodeiaEste globo de Ceres e Netuno,Sempre suspirará por tal aluno.
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33 | Na mesma guerra vê que presas ganhaEstoutro Capitão de pouca gente;Comendadores vence e o gado apanha,Que levavam roubado ousadamente.Outra vez vê que a lança em sangue banhaDestes, só por livrar com o amor ardenteO preso amigo, preso por leal:Pêro Rodrigues é do Landroal.
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34 | Olha este desleal o como pagaO perjúrio que fez e vil engano:Gil Fernandes é de Elvas quem o estraga,E faz vir a passar o último dano:De Xerez rouba o campo, e quase alagaCom o sangue de seus donos Castelhano.Mas olha Rui Pereira, que com o rostoFaz escudo às galés, diante posto.
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35 | Olha que dezessete Lusitanos,Neste outeiro subidos se defendem,Fortes, de quatrocentos Castelhanos,Que em derredor, pelos tomar, se estendem;Porém logo sentiram, com seus danos,Que não só se defendem, mas ofendem:Digno feito de ser no mundo eterno,Grande no tempo antigo e no moderno.
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36 | Sabe-se antigamente que trezentosJá contra mil Romanos pelejaram,No tempo que os viris atrevimentosDe Viriato tanto se ilustraram,E deles alcançando vencimentosMemoráveis, de herança nos deixaramQue os muitos, por ser poucos, não temamos:O que depois mil vezes amestramos.
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37 | Olha cá dois infantes, Pedro e Henrique,Progénie generosa de Joane:Aquele faz que fama ilustre fiqueDele em Germânia, com que a morte engane;Este, que ela nos mares o publiquePor seu descobridor, e desenganeDe Ceita a Maura túmida vaidade,Primeiro entrando as portas da cidade.
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38 | Vês o conde Dom Pedro, que sustentaDois cercos contra toda a Barbaria?Vês, outro Conde está, que representaEm terra Marte, em forças e ousadia;De poder defender se não contentaAlcácere da ingente companhia;Mas do seu Rei defende a cara vida,Pondo por muro a sua, ali perdida.
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39 | Outros muitos verias, que os pintoresAqui também por certo pintariam;Mas falta-lhe pincel, faltam-lhe cores,Honra, prémio, favor, que as artes criam:Culpa dos viciosos sucessores,Que degeneram, certo, e se desviamDo lustre e do valor dos seus passados,Em gostos e vaidades atolados.
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40 | Aqueles pais ilustres que já deramPrincípio à geração que deles pende,Pela virtude muito então fizeram,E por deixar a casa, que descende.Cegos, que dos trabalhos que tiveram,Se alta fama e rumor deles se estende,Escuros deixam sempre seus menores,Com lhe deixar descansos corruptores.
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41 | Outros também há grandes e abastados,Sem nenhum tronco ilustre donde venham;Culpa de Reis, que às vezes a privadosDão mais que a mil, que esforço e saber tenham.Estes os seus não querem ver pintados,Crendo que cores vãs lhe não convenham,E, como a seu contrairo natural,A pintura, que fala, querem mal.
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42 | Não nego que há contudo descendentesDo generoso tronco, e casa rica,Que com costumes altos e excelentes,Sustentam a nobreza que lhe fica;E se a luz dos antigos seus parentesNeles mais o valor não clarifica,Não falta ao menos, nem se faz escura.Mas destes acha poucos a pintura.
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43 | Assim está declarando os grandes feitosO Gama, que ali mostra a vária tinta,Que a douta mão tão claros, tão perfeitos,Do singular artífice ali pinta.Os olhos tinha prontos e direitosO Catual na história bem distinta;Mil vezes perguntava e mil ouviaAs gostosas batalhas que ali via.
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44 | Mas já a luz se mostrava duvidosa,Porque a a lâmpada grande se escondiaDebaixo do Horizonte e luminosaLevava aos Antípodas o dia,Quando o Gentio e a gente generosaDos Naires da nau forte se partiaA buscar o repouso que descansaOs lassos animais, na noite mansa.
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45 | Entretanto os Arúspices famososNa falsa opinião, que em sacrifíciosAntevêem sempre os casos duvidosos,Por sinais diabólicos e indícios,Mandados do Rei próprio, estudiososExercitavam a arte e seus ofíciosSobre esta vinda desta gente estranha,Que às suas terras vem da ignota Espanha.
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46 | Sinal lhe mostra o Demo verdadeiro,De como a nova gente lhe seriaJugo perpétuo, eterno cativeiro,Destruição de gente, e de valia.Vai-se espantado o atónito agoureiroDizer ao Rei (segundo o que entendia)Os sinais temerosos que alcançaraNas entranhas das vítimas que olhara.
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47 | A isto mais se ajunta que um devotoSacerdote da lei de Mafamede,Dos ódios concebidos não remotoContra a divina Fé, que tudo excede,Em forma do Profeta falso e noto,Que do filho da escrava Agar procede,Baco odioso em sonhos lhe aparece,Que de seus ódios ainda se não desse.
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48 | E diz-lhe assim: Guardai-vos, gente minha,Do mal que se aparelha pelo inimigoQue pelas águas úmidas caminha,Antes que esteis mais perto do perigo.Isto dizendo, acorda o Mouro asinha,Espantado do sonho; mas consigoCuida que não é mais que sonho usado:Torna a dormir quieto e sossegado.
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49 | Torna Baco, dizendo: Não conhecesO grã legislador que a teus passadosTem mostrado o preceito a que obedeces,Sem o qual fôreis muitos batizados?Eu por ti, rudo, velo; e tu adormeces!Pois saberás que aqueles, que chegadosDe novo são, serão muito grande danoDa lei que eu dei ao néscio povo humano.
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50 | Enquanto é fraca a força desta gente,Ordena como em tudo se resista,Porque, quando o Sol sai, facilmenteSe pode nele pôr a aguda vista;Porém, depois que sobe claro e ardente,Se agudeza dos olhos o conquista,Tão cega fica, quanto ficareis,Se raízes criar lhe não tolheis.
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51 | Isto dito, ele e o sono se despede.Tremendo fica o atónito Agareno:Salta da cama, lume ao servos pede,Lavrando nele o fervido veneno.Tanto que a nova luz que ao Sol precedeMostrara rosto angélico e sereno,Convoca os principais da torpe seita,Aos quais do que sonhou dá conta estreita.
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52 | Diversos pareceres e contráriosAli se dão , segundo o que entendiam;Astutas traições, enganos vários,Perfídias inventavam e teciam.Mas, deixando conselhos temerários,Destruição da gente pretendiam,Por manhas mais subtis e ardis melhores,Com peitas adquirindo os regedores;
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53 | Com peitas, ouro, e dádivas secretasConciliam da terra os principais,E com razões notáveis e discretasMostram ser perdição dos naturais,Dizendo que são gentes inquietas,Que, os mares discorrendo ocidentais,Vivem só de piráticas rapinas,Sem Rei, sem leis humanas ou divinas
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54 | Ó quanto deve o Rei que bem governa,De olhar que os conselheiros, ou privados,De consciência e de virtude internaE de sincero amor sejam dotados!Porque, como este posto na supremaCadeira, pode mal dos apartadosNegócios ter notícia mais inteira,Do que lhe der a língua conselheira.
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55 | Nem tão pouco direi que tome tantoEm grosso a consciência limpa e certa,Que se enleve num pobre e humilde manto,Onde ambição acaso ande encoberta.E quando um bom em tudo é justo e santo,Em negócios do mundo pouco acerta,Que mal com eles poderá ter contaA quieta inocência, em só Deus pronta.
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56 | Mas aqueles avaros Catuais,Que o Gentílico povo governavam,Induzidos das gentes infernais,O Português despacho dilatavam.Mas o Gama, que não pretende mais,De tudo quanto os Mouros ordenavam,Que levar a seu Rei um sinal certoDo mundo, que deixava descoberto.
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57 | Nisto trabalha só; que bem sabiaQue depois que levasse esta certeza,Armas, o naus, e gente mandariaManuel, que exercita a suma alteza,Com que a seu jugo e lei someteriaDas terras e do mar a redondeza;Que ele não era mais que um diligenteDescobridor das terras do Oriente.
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58 | Falar ao Rei gentio determina,Por que com seu despacho se tornasse,Que já sentia em tudo da malinaGente impedir-se quanto desejasse.O Rei, que da notícia falsa e indinaNão era de espantar se se espantasse,Que tão crédulo era em seus agouros,E mais sendo afirmados pelos Mouros,
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59 | Este temor lhe esfria o baixo peito.Por outra parte a força da cobiça,A quem por natureza está sujeito,Um desejo imortal lhe acende e atiça:Que bem vê que grandíssimo proveitoFará, se com verdade e com justiçaO contrato fizer por longos anos,Que lhe comete o Rei dos Lusitanos.
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60 | Sobre isto, nos conselhos que tomava,Achava muito contrários pareceres;Que naqueles com quem se aconselhavaExecuta o dinheiro seus poderes.O grande Capitão chamar mandava,A quem chegado disse: - Se quiseresConfessar-me a verdade limpa e nua,Perdão alcançarás da culpa tua.
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61 | Fala do Samorim ao GamaEu sou bem informado que a embaixadaQue de teu Rei me deste, que é fingida;Porque nem tu tens Rei, nem pátria amada,Mas vagabundo vás passando a vida;Que quem da Hespéria última alongada,Rei ou senhor de insânia desmedida,Há de vir cometer com naus e frotasTão incertas viagens e remotas?
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62 | E se de grandes Reinos poderososO teu Rei tem a régia majestade,Que presentes me trazes valerosos,Sinais de tua incógnita verdade?Com peças e dons altos, sumptuosos,Se lia dos Reis altos a amizade;Que sinal nem penhor não é bastanteAs palavras dum vago navegante.
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63 | Se porventura vindes desterrados,Como já foram homens de alta sorte,Em meu Reino sereis agasalhados,Que toda a terra é pátria para o forte,;Ou se piratas sois ao mar usados,Dizei-mo sem temor de infâmia ou morte,Que por se sustentar em toda idade,Tudo faz a vital necessidade.
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64 | Isto assim dito, o Gama, que já tinhaSuspeitas das insídias que ordenavaO Mallomético ódio, donde vinhaAquilo que tão mal o Rei cuidava,Com uma alta confiança, que convinha,Com que seguro crédito alcançava,Que Vénus Acidália lhe influía,Tais palavras do sábio peito abria:
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65 | Se os antigos delitos, que a malíciaHumana cometeu na prisca idade,Não causaram que o vaso da niquícia,Açoute tão cruel da Cristandade,Viera pôr perpétua inimicíciaNa geração de Adão, coa falsidade,Ó poderoso Rei da torpe seita,Não conceberas tu tão má suspeita.
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66 | Mas porque nenhum grande bem se alcançaSem grandes opressões, e em todo o feitoSegue o temor os passos da esperança,Que em suor vive sempre de seu peito,Me mostras tu tão pouca confiançaDesta minha verdade, sem respeitoDas razões em contrário que achariasSe não cresses a quem não crer devias.
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67 | Porque, se eu de rapinas só vivesse,Undívago, ou da pátria desterrado,Como crês que tão longe me viesseBuscar assento incógnito e apartado?Por que esperanças, ou por que interesseViria experimentando o mar irado,Os Antarcticos frios, e os ardoresQue sofrem do Carneiro os moradores?
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68 | Se com grandes presentes de alta estimaO crédito me pedes do que digo,Eu não vim mais que a achar o estranho climaOnde a natura pôs teu Reino antigo.Mas, se a Fortuna tanto me sublimaQue eu torne à minha pátria e Reino amigo,Então verás o dom soberbo e rico,Com que minha tornada certifico.
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69 | Se te parece inopinado feito,Que Rei da última Hespéria a ti me mande,O coração sublime, o régio peito,Nenhum caso possível tem por grande.Bem parece que o nobre e grã conceitoDo Lusitano espírito demandeMaior crédito, e fé de mais alteza,Que creia dele tanta fortaleza.
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70 | Sabe que há muitos anos que os antigosReis nossos firmemente propuseramDe vencer os trabalhos e perigos,Que sempre às grandes coisas se opuseram;E, descobrindo os mares inimigosDo quieto descanso, pretenderamDe saber que fim tinham, e onde estavamAs derradeiras praias que lavavam.
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71 | Conceito digno foi do ramo claroDo venturoso Rei, que arou primeiroO mar, por ir deitar do ninho caroO morador de Abila derradeiro.Este, por sua indústria e engenho raro,Num madeiro ajuntando outro madeiro,Descobrir pôde a parte, que faz claraDe Argos, da Hidra a luz, da Lebre e da Ara.
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72 | Crescendo com os sucessos bons primeirosNo peito as ousadias, descobriramPouco e pouco caminhos estrangeiros,Que uns, sucedendo aos outros, prosseguiram.De África os moradores derradeirosAustrais, que nunca as sete flamas viram,Foram vistos de nós, atrás deixandoQuantos estão os Trópicos queimando.
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73 | Assim com firme peito, e com tamanhoPropósito, vencemos a Fortuna,Até que nós no teu terreno estranhoViemos pôr a última coluna.Rompendo a força do líquido estanho,Da tempestade horrífica e importuna,A ti chegamos, de quem só queremosSinal, que ao nosso Rei de ti levemos.
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74 | Esta é a verdade, Rei; que não fariaPor tão incerto bem, tão fraco prémio,Qual, não sendo isto assim, esperar podia,Tão longo, tão fingido e vão proêmio;Mas antes descansar me deixariaNo nunca descansado e fero grêmioDa madre Tethys, qual pirata inico,Dos trabalhos alheios feito rico.
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75 | Assim que, ó Rei, se minha grã verdadeTens por qual é, sincera e não dobrada,Ajunta-me ao despacho brevidade,Não me impeças o gosto da tornada.E, se ainda te parece falsidade,Cuida bem na razão que está provada,Que com claro juízo pode ver-se,Que fácil é a verdade de entender-se.
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76 | A tento estava o Rei na segurançaCom que provava o Gama o que dizia;Concebe dele certa confiança,Crédito firme em quanto proferia.Pondera das palavras a abastança,Julga na autoridade grão valia,Começa de julgar por enganadosOs Catuais corruptos, mal julgados.
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77 | Juntamente a cobiça do proveito,Que espera do contrato Lusitano,O faz obedecer e ter respeitoCom o Capitão, e não com o Mauro engano.Enfim ao Gama manda que direitoAs naus se vá, e, seguro de algum dano,Possa a terra mandar qualquer fazenda,Que pela especiaria troque e venda.
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78 | Que mande da fazenda, enfim, lhe manda,Que nos Reinos Gangéticos faleça;Se alguma traz idónea lá da bandaDonde a terra se acaba e o mar começa.Já da real presença venerandaSe parte o Capitão, para onde peçaAo Catual, que dele tinha cargo,Embarcação, que a sua está de largo.
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79 | Embarcação que o leve às naus lhe pede;Mas o mau Regedor, que novos laçosLhe maquinava, nada lhe concede,Interpondo tardanças e embaraços.Com ele parte ao cais, por que o arredeLonge quanto puder dos régios paços,Onde, sem que seu Rei tenha notícia,Faça o que lhe ensinar sua malícia.
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80 | Lá bem longe lhe diz que lhe dariaEmbarcação bastante em que partisse,Ou que para a luz crástina do diaFuturo sua partida diferisse.Já com tantas tardanças entendiaO Gama, que o Gentio consentisseNa má tenção dos Mouros, torpe e fera,O que dele atéli não entendera.
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81 | Era este Catual um dos que estavamCorruptos pela Maumetana gente,O principal por quem se governavamAs cidades do Samorim potente.Dele somente os Mouros esperavamEfeito a seus enganos torpemente.Ele, que no conceito vil conspira,De suas esperanças não delira.
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82 | O Gama com instância lhe requereQue o mande pôr nas naus, e não lhe vai;E que assim lhe mandara, lhe refere,O nobre sucessor de Perimal.Por que razão lhe impede e lhe difereA fazenda trazer de Portugal?Pois aquilo que os Reis já têm mandadoNão pode ser por outrem derrogado.
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83 | Pouco obedece o Catual corruptoA tais palavras; antes revolvendoNa fantasia algum subtil e astutoEngano diabólico e estupendo,Ou como banhar possa o ferro brutoNo sangue avorrecido, estava vendo;Ou como as naus em fogo lhe abrasasse,Por que nenhuma à pátria mais tornasse.
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84 | Que nenhum torne à pátria só pretendeO conselho infernal dos Maumetanos,Por que não saiba nunca onde se estendeA terra Eoa o Rei dos Lusitanos.Não parte o Gama enfim, que lho defendeO Regedor dos bárbaros profanos;Nem sem licença sua ir-se podia,Que as almadias todas lhe tolhia.
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85 | Aos brados o razões do CapitãoResponde o Idolatra que mandasse -Chegar à terra as naus, que longo estão,Por que melhor dali fosse e tornasse.Sinal é de inimigo e de ladrão,Que lá tão longe a frota se alargasse,Lhe diz, porque do certo e fido amigoÉ não temer do seu nenhum perigo.
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86 | Nestas palavras o discreto GamaEnxerga bem que as naus deseja pertoO Catual, por que com f erro e flama,Lhas assalte, por ódio descoberto.Em vários pensamentos se derrama;Fantasiando está remédio certo,Que desse a quanto mal se lhe ordenava;Tudo temia, tudo enfim cuidava.
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87 | Qual o reflexo lume do polidoEspelho de aço, ou de cristal formoso,Que, do raio solar sendo ferido,Vai ferir noutra parte luminoso,E, sendo da ociosa mão movidoPela casa do moço curioso,Anda pelas paredes é telhadoTrêmulo, aqui e ali, e dessossegado:
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88 | Tal o vago juízo flutuavaDo Gama preso, quando lhe lembraraCoelho, se por caso o esperavaNa praia com os batéis, como ordenara.Logo secretamente lhe mandava,Que se tornasse à frota, que deixara;Não fosse salteado dos enganos,Que esperava dos feros Maumetanos.
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89 | Tal há de ser quem quer, com o dom de Marte,Imitar os ilustres e igualá-los:Voar com o pensamento a toda parte,Adivinhar perigos, e evitá-los:Com militar engenho e subtil arteEntender os inimigos, e enganá-los;Crer tudo, enfim, que nunca louvareiO Capitão que diga: Não cuidei.
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90 | Insiste o Malabar em tê-lo preso,Se não manda chegar a terra a armada;Ele constante, e de ira nobre aceso,Os ameaços seus não teme nada;Que antes quer sobre si tomar o pesoDe quanto mal a vil malícia ousadaLhe andar armando, que pôr em venturaA frota de seu Rei, que tem segura.
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91 | Aquela noite esteve ali detido,E parte do outro dia, quando ordenaDe se tornar ao Rei; mas impedidoFoi da guarda que tinha, não pequena.Comete-lhe o Gentio outro partido,Temendo de seu Rei castigo ou pena,Se sabe esta malícia, a qual asinhaSaberá, se mais tempo ali o detinha.
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92 | Diz-lhe que mande vir toda a fazendaVendível, que trazia, para a terra,Para que de vagar se troque e venda:Que quem não quer comércio, busca guerra.Posto que os maus propósitos entendaO Gama, que o danado peito encerra,Consente, porque sabe por verdade,Que compra com a fazenda a liberdade.
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93 | Concertam-se que o negro mande darEmbarcações idóneas com que venha;Que os seus batéis não quer aventurarOnde lhos tome o inimigo, ou lhos detenha.Partem as almadias a buscarMercadoria Hispana, que convenha.Escreve a seu irmão que lhe mandasseA fazenda com que se resgatasse.
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94 | Vem a fazenda a terra, aonde logoA agasalhou o infame Catual;Com ela ficam Álvaro e Diogo,Que a pudessem vender pelo que val.Se mais que obrigação, que mando e rogoNo peito vil o prémio pode e val,Bem o mostra o Gentio a quem o entenda,Pois o Gama soltou pela fazenda.
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95 | Por ela o solta, crendo que ali tinhaPenhor bastante, donde recebesseInteresse maior do que lhe vinha,Se o Capitão mais tempo detivesse.Ele, vendo que já lhe não convinhaTornar a terra, por que não pudesseSer mais retido, sendo às naus chegadoNelas estar se deixa descansado.
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96 | Nas naus estar se deixa vagaroso,Até ver o que o tempo lhe descobre:Que não se fia já do cobiçosoRegedor corrompido e pouco nobre.Veja agora o juízo curiosoQuanto no rico, assim como no pobre,Pode o vil interesse e sede inimigaDo dinheiro, que a tudo nos obriga.
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97 | A Polidoro mata o Ptei Treício,Só por ficar senhor do grão tesouro;Entra, pelo fortíssimo edifício,Com a filha de Acriso a chuva d'ouro;Pode tanto em Tarpeia avaro vício,Que, a troco do metal luzente e louro,Entrega aos inimigos a alta torre,Do qual quase afogada em pago morre.
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98 | Este rende munidas fortalezas,Faz tredores e falsos os amigos:Este a mais nobres faz fazer vilezas,E entrega Capitães aos inimigos;Este corrompe virginais purezas,Sem temer de honra ou fama alguns perigos:Este deprava às vezes as ciências,Os juízos cegando e as consciências;
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99 | Este interpreta mais que sutilmente.Os textos; este faz e desfaz leis;Este causa os perjúrios entre a gente,E mil vezes tiranos torna os Reis.Até os que só a Deus OnipotenteSe dedicam, mil vezes ouvireisQue corrompe este encantador, e ilude;Mas não sem cor, contudo, de virtude.
FIM. |