Luís Vaz de Camões
1524/25 -1580
Os Lusíadas
Canto X
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Canto décimo e ultimo.
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1 | Mas já o claro amador da LarisséiaAdúltera inclinava os animaisLá pera o grande lago que rodeiaTemistitão, nos fins Ocidentais;O grande ardor do Sol Favónio enfreiaCo sopro que nos tanques naturaisEncrespa a água serena e despertavaOs lírios e jasmins, que a calma agrava,
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2 | Quando as fermosas Ninfas, cos amantesPela mão, já conformes e contentes,Subiam pera os paços radiantesE de metais ornados reluzentes,Mandados da Rainha, que abundantesMesas d'altos manjares excelentesLhe tinha aparelhados, que a fraquezaRestaurem da cansada natureza.
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3 | Ali, em cadeiras ricas, cristalinas,Se assentam dous e dous, amante e dama;Noutras, à cabeceira, d'ouro finas,Está co a bela Deusa o claro Gama.De iguarias suaves e divinas,A quem não chega a Egípcia antiga fama ,Se acumulam os pratos de fulvo ouro,Trazidos lá do Atlântico tesouro.
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4 | Os vinhos odoríferos, que acimaEstão não só do Itálico FalernoMas da Ambrósia, que Jove tanto estimaCom todo o ajuntamento sempiterno,Nos vasos, onde em vão trabalha a lima,Crespas escumas erguem, que no internoCoração movem súbita alegria,Saltando co a mistura d'água fria.
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5 | Mil práticas alegres se tocavam;Risos doces, sutis e argutos ditos,Que entre um e outro manjar se ale vantavam,Despertando os alegres apetitos;Músicos instrumentos não faltavam(Quais, no profundo Reino, os nus espritosFizeram descansar da eterna pena)Cüa voz düa angélica Sirena.
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6 | Cantava a bela Ninfa, e cos acentos,Que pelos altos paços vão soando,Em consonância igual, os instumentosSuaves vêm a um tempo conformando.Um súbito silêncio enfreia os ventosE faz ir docemente murmurandoAs águas, e nas casas naturaisAdormecer os brutos animais.
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7 | Com doce voz está subindo ao CéuAltos varões que estão por vir ao mundo,Cujas claras Ideias viu ProteuNum globo vão, diáfano, rotundo,Que Júpiter em dom lho concedeuEm sonhos, e despois no Reino fundo,Vaticinando, o disse, e na memóriaRecolheu logo a Ninfa a clara história.
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8 | Matéria é de coturno, e não de soco,A que a Ninfa aprendeu no imenso lago;Qual Iopas não soube, ou Demodoco,Entre os Feaces um, outro em Cartago.Aqui, minha Calíope, te invocoNeste trabalho extremo, por que em pagoMe tornes do que escrevo, e em vão pretendo,O gosto de escrever, que vou perdendo.
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9 | Vão os anos descendo, e já do EstioHá pouco que passar até o Outono;A Fortuna me faz o engenho frio,Do qual já não me jacto nem me abono;Os desgostos me vão levando ao rioDo negro esquecimento e eterno sono.Mas tu me dá que cumpra, ó grão rainhaDas Musas, co que quero à nação minha!
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10 | Cantava a bela Deusa que viriamDo Tejo, pelo mar que o Gama abrira,Armadas que as ribeiras venceriamPor onde o Oceano Índico suspira;E que os Gentios Reis que não dariamA cerviz sua ao jugo, o ferro e iraProvariam do braço duro e forte,Até render-se a ele ou logo à morte.
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11 | Cantava dum que tem nos MalabaresDo sumo sacerdócio a dignidade,Que, só por não quebrar cos singularesBarões os nós que dera d'amizade,Sofrerá suas cidades e lugares,Com ferro, incêndios, ira e crueldade,Ver destruir do Samorim potente,Que tais ódios terá co a nova gente.
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12 | E canta como lá se embarcariaEm Belém o remédio deste dano,Sem saber o que em si ao mar traria,O grão Pacheco, Aquiles Lusitano.O peso sentirão, quando entraria,O curvo lenho e o férvido Oceano,Quando mais n'água os troncos que gemeremContra sua natureza se meterem.
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13 | Mas, já chegado aos fins OrientaisE deixado em ajuda do gentio Rei deCochim, com poucos naturais,Nos braços do salgado e curvo rioDesbaratará os Naires infernaisNo passo Cambalão, tornando frioD'espanto o ardor imenso do Oriente,Que verá tanto obrar tão pouca gente.
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14 | Chamará o Samorim mais gente nova;Virão Reis [de] Bipur e de Tanor,Das serras de Narsinga, que alta provaEstarão prometendo a seu senhor;Fará que todo o Naire, enfim, se movaQue entre Calecu jaz e Cananor,D'ambas as Leis imigas pera a guerra:Mouros por mar, Gentios pola terra.
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15 | E todos outra vez desbaratando,Por terra e mar, o grão Pacheco ousado,A grande multidão que irá matandoA todo o Malabar terá admirado.Cometerá outra vez, não dilatando,O Gentio os combates, apressado,Injuriando os seus, fazendo votosEm vão aos Deuses vãos, surdos e imotos.
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16 | Já não defenderá somente os passos,Mas queimar-lhe-á lugares, templos, casas;Aceso de ira, o Cão, não vendo lassosAqueles que as cidades fazem rasas,Fará que os seus, de vida pouco escassos,Cometam o Pacheco, que tem asas,Por dous passos num tempo; mas voandoDum noutro, tudo irá desbaratando.
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17 | Virá ali o Samorim, por que em pessoaVeja a batalha e os seus esforce e anime;Mas um tiro, que com zunido voa,De sangue o tingirá no andor sublime.Já não verá remédio ou manha boaNem força que o Pacheco muito estime;Inventará traições e vãos venenos,Mas sempre (o Céu querendo) fará menos.
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18 | Que tornará a vez sétima (cantava)Pelejar co invicto e forte Luso,A quem nenhum trabalho pesa e agrava;Mas, contudo, este só o fará confuso.Trará pera a batalha, horrenda e brava,Máquinas de madeiros fora de uso,Pera lhe abalroar as caravelas,Que até'li vão lhe fora cometê-las.
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19 | Pela água levará serras de fogoPera abrasar-lhe quanta armada tenha;Mas a militar arte e engenho logoFará ser vã a braveza com que venha.- Nenhum claro barão no Márcio jogo,Que nas asas da Fama se sustenha,Chega a este, que a palma a todos toma.E perdoe-me a ilustre Grécia ou Roma.
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20 | Porque tantas batalhas, sustentadasCom muito pouco mais de cem soldados,Com tantas manhas e artes inventadas,Tantos Cães não imbeles profligados,Ou parecerão fábulas sonhadas,Ou que os celestes Coros, invocados,Decerão a ajudá-lo e lhe darãoEsforço, força, ardil e coração.
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21 | Aquele que nos campos MaratóniosO grão poder de Dário estrui e rende,Ou quem, com quatro mil Lacedemónios,O passo de Termópilas defende,Nem o mancebo Cocles dos Ausónios,Que com todo o poder Tusco contendeEm defensa da ponte, ou Quinto Fábio,Foi como este na guerra forte e sábio.
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22 | Mas neste passo a Ninfa, o som canoroAbaxando, fez ronco e entristecido,Cantando em baxa voz, envolta em choro,O grande esforço mal agardecido.- Ó Belisário (disse) que no coroDas Musas serás sempre engrandecido,Se em ti viste abatido o bravo Marte,Aqui tens com quem podes consolar-te!
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23 | Aqui tens companheiro, assi nos feitosComo no galardão injusto e duro;Em ti e nele veremos altos peitosA baxo estado vir, humilde e escuro.Morrer nos hospitais, em pobres leitos,Os que ao Rei e à Lei servem de muro!Isto fazem os Reis cuja vontadeManda mais que a justiça e que a verdade.
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24 | Isto fazem os Reis quando embebidosNüa aparência branda que os contentaDão os prémios, de Aiace merecidos,À língua vã de Ulisses, fraudulenta.Mas vingo-me: que os bens mal repartidosPor quem só doces sombras apresenta,Se não os dão a sábios cavaleiros,Dão-os logo a avarentos lisonjeiros.
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25 | Mas tu, de quem ficou tão mal pagadoUm tal vassalo, ó Rei, só nisto inico,Se não és pera dar-lhe honroso estado,É ele pera dar-te um Reino rico.Enquanto for o mundo rodeadoDos Apolíneos raios, eu te ficoQue ele seja entre a gente ilustre e claro,E tu nisto culpado por avaro.
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26 | Mas eis outro (cantava) intituladoVem com nome real e traz consigoO filho, que no mar será ilustrado,Tanto como qualquer Romano antigo.Ambos darão com braço forte, armado,A Quíloa fértil, áspero castigo,Fazendo nela Rei leal e humano,Deitado fora o pérfido tirano.
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27 | Também farão Mombaça, que se arreiaDe casas sumptuosas e edifícios,Co ferro e fogo seu queimada e feia,Em pago dos passados malefícios.Despois, na costa da Índia, andando cheiaDe lenhos inimigos e artifíciosContra os Lusos, com velas e com remosO mancebo Lourenço fará extremos.
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28 | Das grandes naus do Samorim potente,Que encherão todo o mar, co a férrea pela,Que sai com trovão do cobre ardente,Fará pedaços leme, masto, vela.Despois, lançando arpéus ousadamenteNa capitaina imiga, dentro nelaSaltando o fará só com lança e espadaDe quatrocentos Mouros despejada.
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29 | Mas de Deus a escondida providência(Que ela só sabe o bem de que se serve)O porá onde esforço nem prudênciaPoderá haver que a vida lhe reserve.Em Chaúl, onde em sangue e resistênciaO mar todo com fogo e ferro ferve,Lhe farão que com vida se não saiaAs armadas de Egipto e de Cambaia.
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30 | Ali o poder de muitos inimigos(Que o grande esforço só com força rende),Os ventos que faltaram, e os perigosDo mar, que sobejaram, tudo o ofende.Aqui ressurjam todos os Antigos,A ver o nobre ardor que aqui se aprende:Outro Ceva verão, que, espedaçado,Não sabe ser rendido nem domado.
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31 | Com toda üa coxa fora, que em pedaçosLhe leva um cego tiro que passara,Se serve inda dos animosos braçosE do grão coração que lhe ficara.Até que outro pelouro quebra os laçosCom que co alma o corpo se liara:Ela, solta, voou da prisão foraOnde súbito se acha vencedora.
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32 | Vai-te, alma, em paz, da guerra turbulenta,Na qual tu mereceste paz serena!Que o corpo, que em pedaços se apresenta,Quem o gerou, vingança já lhe ordena:Que eu ouço retumbar a grão tormenta,Que vem já dar a dura e eterna pena,De esperas, basiliscos e trabucos,A Cambaicos cruéis e Mamelucos.
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33 | Eis vem o pai, com ânimo estupendo,Trazendo fúria e mágoa por antolhos,Com que o paterno amor lhe está movendoFogo no coração, água nos olhos.A nobre ira lhe vinha prometendoQue o sangue fará dar pelos giolhosNas inimigas naus; senti-lo-á o Nilo,Podê-lo-á o Indo ver e o Gange ouvi-lo.
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34 | Qual o touro cioso, que se ensaiaPera a crua peleja, os cornos tentaNo tronco dum carvalho ou alta faiaE, o ar ferindo, as forças experimenta:Tal, antes que no seio de CambaiaEntre Francisco irado, na opulentaCidade de Dabul a espada afia,Abaxando-lhe a túmida ousadia.
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35 | E logo, entrando fero na enseadaDe Dio, ilustre em cercos e batalhas,Fará espalhar a fraca e grande armadaDe Calecu, que remos tem por malhas.A de Melique Iaz, acautelada,Cos pelouros que tu, Vulcano, espalhas,Fará ir ver o frio e fundo assento,Secreto leito do húmido elemento.
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36 | Mas a de Mir Hocém, que, abalroando,A fúria esperará dos vingadores,Verá braços e pernas ir nadandoSem corpos, pelo mar, de seus senhores.Raios de fogo irão representando,No cego ardor, os bravos domadores.Quanto ali sentirão olhos e ouvidosÉ fumo, ferro, flamas e alaridos.
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37 | Mas ah, que desta próspera vitória,Com que despois virá ao pátrio Tejo,Quási lhe roubará a famosa glóriaUm sucesso, que triste e negro vejo!O Cabo Tormentório, que a memóriaCos ossos guardará, não terá pejoDe tirar deste mundo aquele esprito,Que não tiraram toda a Índia e Egipto.
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38 | Ali, Cafres selvagens poderãoO que destros imigos não puderam;E rudos paus tostados sós farãoO que arcos e pelouros não fizeram.Ocultos os juízos de Deus são;As gentes vãs, que não nos entenderam,Chamam-lhe fado mau, fortuna escura,Sendo só providência de Deus pura.
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39 | Mas oh, que luz tamanha que abrir sinto(Dizia a Ninfa, e a voz alevantava)Lá no mar de Melinde, em sangue tintoDas cidades de Lamo, de Oja e Brava,Pelo Cunha também, que nunca extintoSerá seu nome em todo o mar que lavaAs ilhas do Austro, e praias que se chamamDe São Lourenço, e em todo o Sul se afamam!
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40 | Esta luz é do fogo e das luzentesArmas com que Albuquerque irá amansandoDe Ormuz os Párseos, por seu mal valentes,Que refusam o jugo honroso e brando.Ali verão as setas estridentesReciprocar-se, a ponta no ar virandoContra quem as tirou; que Deus pelejaPor quem estende a fé da Madre Igreja.
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41 | Ali do sal os montes não defendemDe corrupção os corpos no combate,Que mortos pela praia e mar se estendemDe Gerum, de Mazcate e Calaiate;Até que à força só de braço aprendemA abaxar a cerviz, onde se lhe ateObrigação de dar o reino inicoDas perlas de Barém tributo rico.
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42 | Que gloriosas palmas tecer vejoCom que Vitória a fronte lhe coroa,Quando, sem sombra vã de medo ou pejo,Toma a ilha ilustríssima de Goa!Despois, obedecendo ao duro ensejo,A deixa, e ocasião espera boaCom que a torne a tomar, que esforço e arteVencerão a Fortuna e o próprio Marte.
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43 | Eis já sobr'ela torna e vai rompendoPor muros, fogo, lanças e pelouros,Abrindo com a espada o espesso e horrendoEsquadrão de Gentios e de Mouros.Irão soldados ínclitos fazendoMais que liões famélicos e touros,Na luz que sempre celebrada e dinaSerá da Egípcia Santa Caterina.
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44 | Nem tu menos fugir poderás deste,Posto que rica e posto que assentadaLá no grémio da Aurora, onde naceste,Opulenta Malaca nomeada.As setas venenosas que fizeste,Os crises com que já te vejo armada,Malaios namorados, Jaus valentes,Todos farás ao Luso obedientes.
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45 | Mais estanças cantara esta SirenaEm louvor do ilustríssimo Albuquerque,Mas alembrou-lhe üa ira que o condena,Posto que a fama sua o mundo cerque.O grande Capitão, que o fado ordenaQue com trabalhos glória eterna merque,Mais há-de ser um brando companheiroPera os seus, que juiz cruel e inteiro.
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46 | Mas em tempo que fomes e asperezas,Doenças, frechas e trovões ardentes,A sazão e o lugar, fazem cruezasNos soldados a tudo obedientes,Parece de selváticas brutezas,De peitos inumanos e insolentes,Dar extremo suplício pela culpaQue a fraca humanidade e Amor desculpa.
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47 | Não será a culpa abominoso incestoNem violento estupro em virgem pura,Nem menos adultério desonesto,Mas cüa escrava vil, lasciva e escura.Se o peito, ou de cioso, ou de modesto,Ou de usado a crueza fera e dura,Cos seus üa ira insana não refreia,Põe na fama alva noda negra e feia.
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48 | Viu Alexandre Apeles namoradoDa sua Campaspe, e deu-lha alegremente,Não sendo seu soldado exprimentado,Nem vendo-se num cerco duro e urgente.Sentiu Ciro que andava já abrasadoAraspas, de Panteia, em fogo ardente,Que ele tomara em guarda, e prometiaQue nenhum mau desejo o venceria;
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49 | Mas, vendo o ilustre Persa que vencidoFora de Amor, que, enfim, não tem defensa,Levemente o perdoa, e foi servidoDele num caso grande, em recompensa.Per força, de Judita foi maridoO férreo Balduíno; mas dispensaCarlos, pai dela, posto em causas grandes,Que viva e povoador seja de Frandes.
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50 | Mas, prosseguindo a Ninfa o longo canto,De Soares cantava, que as bandeirasFaria tremular e pôr espantoPelas roxas Arábicas ribeiras:- Medina abominábil teme tanto,Quanto Meca e Gidá, co as derradeirasPraias de Abássia; Barborá se temeDo mal de que o empório Zeila geme.
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51 | A nobre ilha também de Taprobana,Já pelo nome antigo tão famosaQuanto agora soberba e soberanaPela cortiça cálida, cheirosa,Dela dará tributo à LusitanaBandeira, quando, excelsa e gloriosa,Vencendo se erguerá na torre erguida,Em Columbo, dos próprios tão temida.
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52 | Também Sequeira, as ondas EritreiasDividindo, abrirá novo caminhoPera ti, grande Império, que te arreiasDe seres de Candace e Sabá ninho.Maçuá, com cisternas de água cheiasVerá, e o porto Arquico, ali vizinho;E fará descobir remotas Ilhas,Que dão ao mundo novas maravilhas.
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53 | Virá despois Meneses, cujo ferroMais na Africa, que cá, terá provado;Castigará de Ormuz soberba o erro,Com lhe fazer tributo dar dobrado.Também tu, Gama, em pago do desterroEm que estás e serás inda tornado,Cos títulos de Conde e d'honras nobresVirás mandar a terra que descobres.
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54 | Mas aquela fatal necessidadeDe quem ninguém se exime dos humanos,Ilustrado co a Régia dignidade,Te tirará do mundo e seus enganos.Outro Meneses logo, cuja idadeÉ maior na prudência que nos anos,Governará; e fará o ditoso HenriqueQue perpétua memória dele fique.
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55 | Não vencerá somente os Malabares,Destruindo Panane com Coulete,Cometendo as bombardas, que, nos ares,Se vingam só do peito que as comete;Mas com virtudes, certo, singulares,Vence os imigos d'alma todos sete;De cobiça triunfa e incontinência,Que em tal idade é suma de excelência.
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56 | Mas, despois que as Estrelas o chamarem,Sucederás, ó forte Mascarenhas;E, se injustos o mando te tomarem,Prometo-te que fama eterna tenhas.Pera teus inimigos confessaremTeu valor alto, o fado quer que venhasA mandar, mais de palmas coroado,Que de fortuna justa acompanhado.
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57 | No reino de Bintão, que tantos danosTerá a Malaca muito tempo feitos,Num só dia as injúrias de mil anosVingarás, co valor de ilustres peitos.Trabalhos e perigos inumanos,Abrolhos férreos mil, passos estreitos,Tranqueiras, baluartes, lanças, setas:Tudo fico que rompas e sometas.
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58 | Mas na Índia, cobiça e ambição,Que claramente põem aberto o rostoContra Deus e Justiça, te farãoVitupério nenhum, mas só desgosto.Quem faz injúria vil e sem razão,Com forças e poder em que está posto,Não vence; que a vitória verdadeiraÉ saber ter justiça nua e inteira.
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59 | Mas, contudo, não nego que SampaioSerá, no esforço, ilustre e assinalado,Mostrando-se no mar um fero raio,Que de inimigos mil verá coalhado.Em Bacanor fará cruel ensaioNo Malabar, pera que, amedrontado,Despois a ser vencido dele venhaCutiale, com quanta armada tenha.
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60 | E não menos de Dio a fera frota,Que Chaúl temerá, de grande e ousada,Fará, co a vista só, perdida e rota,Por Heitor da Silveira e destroçada;Por Heitor Português, de quem se notaQue na costa Cambaica, sempre armada,Será aos Guzarates tanto dano,Quanto já foi aos Gregos o Troiano.
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61 | A Sampaio feroz sucederáCunha, que longo tempo tem o leme:De Chale as torres altas erguerá,Enquanto Dio ilustre dele treme;O forte Baçaim se lhe dará,Não sem sangue, porém, que nele gemeMelique, porque à força só de espadaA tranqueira soberba vê tomada.
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62 | Trás este vem Noronha, cujo auspícioDe Dio os Rumes feros afugenta;Dio, que o peito e bélico exercícioDe António da Silveira bem sustenta.Fará em Noronha a morte o usado ofício,Quando um teu ramo, ó Gama, se exprimentaNo governo do Império, cujo zeloCom medo o Roxo Mar fará amarelo.
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63 | Das mãos do teu Estêvão vem tomarAs rédeas um, que já será ilustradoNo Brasil, com vencer e castigarO pirata Francês, ao mar usado.Despois, Capitão-mor do Índico mar,O muro de Damão, soberbo e armado,Escala e primeiro entra a porta aberta,Que fogo e frechas mil terão coberta.
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64 | A este o Rei Cambaico soberbíssimoFortaleza dará na rica Dio,Por que contra o Mogor poderosíssimoLhe ajude a defender o senhorio.Despois irá com peito esforçadíssimoA tolher que não passe o Rei gentioDe Calecu, que assi com quantos veioO fará retirar, de sangue cheio.
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65 | Destruirá a cidade Repelim,Pondo o seu Rei, com muitos, em fugida;E despois, junto ao Cabo Comorim,üa façanha faz esclarecida:A frota principal do Samorim,Que destruir o mundo não duvida,Vencerá co furor do ferro e fogo;Em si verá Beadala o Márcio jogo.
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66 | Tendo assi limpa a Índia dos imigos,Virá despois com ceptro a governá-IaSem que ache resistência nem perigos,Que todos tremem dele e nenhum fala.Só quis provar os ásperos castigosBaticalá, que vira já Beadala.De sangue e corpos mortos ficou cheiaE de fogo e trovões desfeita e feia.
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67 | Este será Martinho, que de MarteO nome tem co as obras derivado;Tanto em armas ilustre em toda parte,Quanto, em conselho, sábio e bem cuidado.Suceder-lhe-á ali Castro, que o estandartePortuguês terá sempre levantado,Conforme sucessor ao sucedido,Que um ergue Dio, outro o defende erguido.
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68 | Persas feroces, Abassis e Rumes,Que trazido de Roma o nome têm,Vários de gestos, vários de costumes(Que mil nações ao cerco feras vêm),Farão dos Céus ao mundo vãos queixumesPorque uns poucos a terra lhe detêm.Em sangue Português, juram, descridos,De banhar os bigodes retorcidos.
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69 | Basiliscos medonhos e liões,Trabucos feros, minas encobertas,Sustenta Mascarenhas cos barõesQue tão ledos as mortes têm por certas;Até que, nas maiores opressões,Castro libertador, fazendo ofertasDas vidas de seus filhos, quer que fiquemCom fama eterna e a Deus se sacrifiquem.
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70 | Fernando, um deles, ramo da alta pranta,Onde o violento fogo, com ruido,Em pedaços os muros no ar levanta,Será ali arrebatado e ao Céu subido.Álvaro, quando o Inverno o mundo espantaE tem o caminho húmido impedido,Abrindo-o, vence as ondas e os perigos,Os ventos e despois os inimigos.
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71 | Eis vem despois o pai, que as ondas cortaCo restante da gente Lusitana,E com força e saber, que mais importa,Batalha dá felice e soberana.Uns, paredes subindo, escusam porta;Outros a abrem na fera esquadra insana.Feitos farão tão dinos de memóriaQue não caibam em verso ou larga história.
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72 | Este, despois, em campo se apresenta,Vencedor forte e intrépido, ao possanteRei de Cambaia e a vista lhe amedrentaDa fera multidão quadrupedante.Não menos suas terras mal sustentaO Hidalcão, do braço triunfanteQue castigando vai Dabul na costa;Nem lhe escapou Pondá, no sertão posta.
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73 | Estes e outros Barões, por várias partes,Dinos todos de fama e maravilha,Fazendo-se na terra bravos Martes,Virão lograr os gostos desta Ilha,Varrendo triunfantes estandartesPelas ondas que corta a aguda quilha;E acharão estas Ninfas e estas mesas,Que glórias e honras são de árduas empresas.
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74 | Assi cantava a Ninfa; e as outras todas,Com sonoroso aplauso, vozes davam,Com que festejam as alegres vodasQue com tanto prazer se celebravam.- Por mais que da Fortuna andem as rodas(Nüa cônsona voz todas soavam),Não vos hão-de faltar, gente famosa,Honra, valor e fama gloriosa.
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75 | Despois que a corporal necessidadeSe satisfez do mantimento nobre,E na harmonia e doce suavidadeViram os altos feitos que descobre,Tétis, de graça ornada e gravidade,Pera que com mais alta glória dobreAs festas deste alegre e claro dia,Pera o felice Gama assi dizia:
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76 | Faz-te mercê, barão, a SapiênciaSuprema de, cos olhos corporais,Veres o que não pode a vã ciênciaDos errados e míseros mortais.Sigue-me firme e forte, com prudência,Por este monte espesso, tu cos mais.Assi lhe diz e o guia por um matoÁrduo, difícil, duro a humano trato.
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77 | Não andam muito que no erguido cumeSe acharam, onde um campo se esmaltavaDe esmeraldas, rubis, tais que presumeA vista que divino chão pisava.Aqui um globo vêm no ar, que o lumeClaríssimo por ele penetrava,De modo que o seu centro está evidente,Como a sua superfícia, claramente.
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78 | Qual a matéria seja não se enxerga,Mas enxerga-se bem que está compostoDe vários orbes, que a Divina vergaCompôs, e um centro a todos só tem posto.Volvendo, ora se abaxe, agora se erga,Nunca s'ergue ou se abaxa, e um mesmo rostoPor toda a parte tem; e em toda a parteComeça e acaba, enfim, por divina arte,
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79 | Uniforme, perfeito, em si sustido,Qual, enfim, o Arquetipo que o criou.Vendo o Gama este globo, comovidoDe espanto e de desejo ali ficou.Diz-lhe a Deusa: - O transunto, reduzidoEm pequeno volume, aqui te douDo Mundo aos olhos teus, pera que vejasPor onde vás e irás e o que desejas.
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80 | Vês aqui a grande máquina do Mundo,Etérea e elemental, que fabricadaAssi foi do Saber, alto e profundo,Que é sem princípio e meta limitada.Quem cerca em derredor este rotundoGlobo e sua superfícia tão limada,É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,Que a tanto o engenho humano não se estende.
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81 | Este orbe que, primeiro, vai cercandoOs outros mais pequenos que em si tem,Que está com luz tão clara radiandoQue a vista cega e a mente vil também,Empíreo se nomeia, onde lograndoPuras almas estão daquele BemTamanho, que ele só se entende e alcança,De quem não há no mundo semelhança.
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82 | Aqui, só verdadeiros, gloriososDivos estão, porque eu, Saturno e Jano,Júpiter, Juno, fomos fabulosos,Fingidos de mortal e cego engano.Só pera fazer versos deleitososServimos; e, se mais o trato humanoNos pode dar, é só que o nome nossoNestas estrelas pôs o engenho vosso.
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83 | E também, porque a santa Providência,Que em Júpiter aqui se representa,Por espíritos mil que têm prudênciaGoverna o Mundo todo que sustenta(Ensina-lo a profética ciência,Em muitos dos exemplos que apresenta);Os que são bons, guiando, favorecem,Os maus, em quanto podem, nos empecem;
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84 | Quer logo aqui a pintura que variaAgora deleitando, ora ensinando,Dar-lhe nomes que a antiga PoesiaA seus Deuses já dera, fabulando;Que os Anjos de celeste companhiaDeuses o sacro verso está chamando,Nem nega que esse nome preminenteTambém aos maus se dá, mas falsamente.
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85 | Enfim que o Sumo Deus, que por segundasCausas obra no Mundo, tudo manda.E tornando a contar-te das profundasObras da Mão Divina veneranda,Debaxo deste círculo onde as mundasAlmas divinas gozam, que não anda,Outro corre, tão leve e tão ligeiroQue não se enxerga: é o Móbile primeiro.
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86 | Com este rapto e grande movimentoVão todos os que dentro tem no seio;Por obra deste, o Sol, andando a tento,O dia e noite faz, com curso alheio.Debaxo deste leve, anda outro lento,Tão lento e sojugado a duro freio,Que enquanto Febo, de luz nunca escasso,Duzentos cursos faz, dá ele um passo.
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87 | Olha estoutro debaxo, que esmaltadoDe corpos lisos anda e radiantes,Que também nele tem curso ordenadoE nos seus axes correm cintilantes.Bem vês como se veste e faz ornadoCo largo Cinto d, ouro, que estelantesAnimais doze traz afigurados,Apousentos de Febo limitados.
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88 | Olha por outras partes a pinturaQue as Estrelas fulgentes vão fazendo:Olha a Carreta, atenta a Cinosura,Andrómeda e seu pai, e o Drago horrendo;Vê de Cassiopeia a fermosuraE do Orionte o gesto turbulento;Olha o Cisne morrendo que suspira,A Lebre e os Cães, a Nau e a doce Lira.
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89 | Debaxo deste grande Firmamento,Vês o céu de Saturno, Deus antigo;Júpiter logo faz o movimento,E Marte abaxo, bélico inimigo;O claro Olho do céu, no quarto assento,E Vénus, que os amores traz consigo;Mercúrio, de eloquência soberana;Com três rostos, debaxo vai Diana.
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90 | Em todos estes orbes, diferenteCurso verás, nuns grave e noutros leve;Ora fogem do Centro longamente,Ora da Terra estão caminho breve,Bem como quis o Padre omnipotente,Que o fogo fez e o ar, o vento e neve,Os quais verás que jazem mais a dentroE tem co Mar a Terra por seu centro.
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91 | Neste centro, pousada dos humanos,Que não somente, ousados, se contentamDe sofrerem da terra firme os danos,Mas inda o mar instábil exprimentam,Verás as várias partes, que os insanosMares dividem, onde se apousentamVárias nações que mandam vários Reis,Vários costumes seus e várias leis.
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92 | Vês Europa Cristã, mais alta e claraQue as outras em polícia e fortaleza.Vês África, dos bens do mundo avara,Inculta e toda cheia de bruteza;Co Cabo que até'aqui se vos negara,Que assentou pera o Austro a Natureza.Olha essa terra toda, que se habitaDessa gente sem Lei, quási infinita.
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93 | Vê do Benomotapa o grande império,De selvática gente, negra e nua,Onde Gonçalo morte e vitupérioPadecerá, pola Fé santa sua.Nace por este incógnito HemispérioO metal por que mais a gente sua.Vê que do lago donde se derramaO Nilo, também vindo está Cuama.
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94 | Olha as casas dos negros, como estãoSem portas, confiados, em seus ninhos,Na justiça real e defensãoE na fidelidade dos vizinhos;Olha deles a bruta multidão,Qual bando espesso e negro de estorninhos,Combaterá em Sofala a fortaleza, Quedefenderá Nhaia com destreza.
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95 | Olha lá as alagoas donde o NiloNace, que não souberam os antigos;Vê-lo rega, gerando o crocodilo,Os povos Abassis, de Crista amigos;Olha como sem muros (novo estilo)Se defendem milhor dos inimigos;Vê Méroe, que ilha foi de antiga fama,Que ora dos naturais Nobá se chama.
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96 | Nesta remota terra um filho teuNas armas contra os Turcos será claro;Há-de ser Dom Cristóvão o nome seu;Mas contra o fim fatal não há reparo.Vê cá a costa do mar, onde te deuMelinde hospício gasalhoso e caro;O Rapto rio nota, que o romanceDa terra chama Obi; entra em Quilmance.
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97 | O Cabo vê já Arómata chamado,E agora Guardafú, dos moradores,Onde começa a boca do afamadoMar Roxo, que do fundo toma as cores;Este como limite está lançadoQue divide Asia de Africa; e as milhoresPovoações que a parte Africa temMaçuá são, Arquico e Suaquém.
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98 | Vês o extremo Suez, que antigamenteDizem que foi dos Héroas a cidade(Outros dizem que Arsínoe), e ao presenteTem das frotas do Egipto a potestade.Olha as águas nas quais abriu patenteEstrada o grão Mousés na antiga idade.Ásia começa aqui, que se apresentaEm terras grande, em reinos opulenta.
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99 | Olha o monte Sinai, que se ennobreceCo sepulcro de Santa Caterina;Olha Toro e Gidá, que lhe faleceÁgua das fontes, doce e cristalina;Olha as portas do Estreito, que feneceNo reino da seca Ádem, que confinaCom a serra d'Arzira, pedra viva,Onde chuva dos céus se não deriva.
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100 | Olha as Arábias três, que tanta terraTomam, todas da gente vaga e baça,Donde vêm os cavalos pera a guerra,Ligeiros e feroces, de alta raça;Olha a costa que corrre, até que ceraOutro Estreito de Pérsia, e faz a traçaO Cabo que co nome se apelidaDa cidade Fartaque, ali sabida.
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101 | Olha Dófar, insigne porque mandaO mais cheiroso incenso pera as aras;Mas atenta: já cá destoutra bandaDe Roçalgate, e praias sempre avaras,Começa o reino Ormuz, que todo se andaPelas ribeiras que inda serão clarasQuando as galés do Turco e fera armadaVirem de Castelbranco nua a espada.
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102 | Olha o Cabo Asaboro, que chamadoAgora é Moçandão, dos navegantes;Por aqui entra o lago que é fechadoDe Arábia e Pérsias terras abundantes.Atenta a ilha Barém, que o fundo ornadoTem das suas perlas ricas, e imitantesA cor da Aurora; e vê na água salgadaTer o Tígris e Eufrates üa entrada.
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103 | Olha da grande Pérsia o império nobre,Sempre posto no campo e nos cavalos,Que se injuria de usar fundido cobreE de não ter das armas sempre os calos.Mas vê a ilha Gerum, como descobreO que fazem do tempo os intervalos,Que da cidade Armuza, que ali esteve,Ela o nome despois e a glória teve.
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104 | Aqui de Dom Filipe de MenesesSe mostrará a virtude, em armas clara,Quando, com muito poucos Portugueses,Os muitos Párseos vencerá de Lara.Virão provar os golpes e revesesDe Dom Pedro de Sousa, que provaraJá seu braço em Ampaza, que deixadaTerá por terra, à força só de espada.
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105 | Mas deixemos o Estreito e o conhecidoCabo de Jasque, dito já Carpela,Com todo o seu terreno mal queridoDa Natura e dos dões usados dela;Carmânia teve já por apelido.Mas vês o fermoso Indo, que daquelaAltura nace, junto à qual, tambémDoutra altura correndo o Gange vem?
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106 | Olha a terra de Ulcinde, fertilíssima,E de Jáquete a íntima enseada;Do mar a enchente súbita, grandíssima,E a vazante, que foge apressurada.A terra de Cambaia vê, riquíssima,Onde do mar o seio faz entrada;Cidades outras mil, que vou passando,A vós outros aqui se estão guardando.
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107 | Vês corre a costa célebre IndianaPera o Sul, até o Cabo Comori,Já chamado Cori, que Taprobana(Que ora é Ceilão) defronte tem de si.Por este mar a gente Lusitana,Que com armas virá despois de ti,Terá vitórias, terras e cidades,Nas quais hão-de viver muitas idades.
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108 | As províncias que entre um e o outro rioVês, com várias nações, são infinitas:Um reino Mahometa, outro Gentio,A quem tem o Demónio leis escritas.Olha que de Narsinga o senhorioTem as relíquias santas e benditasDo corpo de Tomé, barão sagrado,Que a Jesu Cristo teve a mão no lado.
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109 | Aqui a cidade foi que se chamavaMeliapor, fermosa, grande e rica;Os Ídolos antigos adoravaComo inda agora faz a gente inica.Longe do mar naquele tempo estava,Quando a Fé, que no mundo se pubrica,Tomé vinha prègando, e já passaraProvíncias mil do mundo, que ensinara.
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110 | Chegado aqui, pregando e junto dandoA doentes saúde, a mortos vida,Acaso traz um dia o mar, vagando,Um lenho de grandeza desmedida.Deseja o Rei, que andava edificando,Fazer dele madeira; e não duvidaPoder tirá-lo a terra, com possantesForças d' homens, de engenhos, de alifantes.
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111 | Era tão grande o peso do madeiroQue, só pera abalar-se, nada abasta;Mas o núncio de Cristo verdadeiroMenos trabalho em tal negócio gasta:Ata o cordão que traz, por derradeiro,No tronco, e fàcilmente o leva e arrastaPera onde faça um sumptuoso temploQue ficasse aos futuros por exemplo.
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112 | Sabia bem que se com fé formadaMandar a um monte surdo que se mova,Que obedecerá logo à voz sagrada,Que assi lho ensinou Cristo, e ele o prova.A gente ficou disto alvoraçada;Os Brâmenes o têm por cousa nova;Vendo os milagres, vendo a santidade,Hão medo de perder autoridade.
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113 | São estes sacerdotes dos GentiosEm quem mais penetrado tinha enveja;Buscam maneiras mil, buscam desvios,Com que Tomé não se ouça, ou morto seja.O principal, que ao peito traz os fios,Um caso horrendo faz, que o mundo vejaQue inimiga não há, tão dura e fera,Como a virtude falsa, da sincera.
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114 | Um filho próprio mata, e logo acusaDe homicídio Tomé, que era inocente;Dá falsas testemunhas, como se usa;Condenaram-no a morte brevemente.O Santo, que não vê milhor escusaQue apelar pera o Padre omnipotente,Quer, diante do Rei e dos senhores,Que se faça um milagre dos maiores.
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115 | O corpo morto manda ser trazido,Que res[s]ucite e seja perguntadoQuem foi seu matador, e será cridoPor testemunho, o seu, mais aprovado.Viram todos o moço vivo, erguido,Em nome de Jesu crucificado:Dá graças a Tomé, que lhe deu vida,E descobre seu pai ser homicida.
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116 | Este milagre fez tamanho espantoQue o Rei se banha logo na água santa,E muitos após ele; um beija o manto,Outro louvor do Deus de Tomé canta.Os Brâmenes se encheram de ódio tanto,Com seu veneno os morde enveja tanta,Que, persuadindo a isso o povo rudo,Determinam matá-lo, em fim de tudo.
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117 | Um dia que pregando ao povo estava,Fingiram entre a gente um arruído.(Já Cristo neste tempo lhe ordenavaQue, padecendo, fosse ao Céu subido);A multidão das pedras que voavaNo Santo dá, já a tudo oferecido;Um dos maus, por fartar-se mais depressa,Com crua lança o peito lhe atravessa.
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118 | Choraram-te, Tomé, o Gange e o Indo;Chorou-te toda a terra que pisaste;Mais te choram as almas que vestindoSe iam da santa Fé que lhe ensinaste.Mas os Anjos do Céu, cantando e rindo,Te recebem na glória que ganhaste.Pedimos-te que a Deus ajuda peçasCom que os teus Lusitanos favoreças.
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119 | E vós outros que os nomes usurpaisDe mandados de Deus, como Tomé,Dizei: se sois mandados, como estaisSem irdes a pregar a santa Fé?Olhai que, se sois Sal e vos danaisNa pátria, onde profeta ninguém é,Com que se salgarão em nossos dias(Infiéis deixo) tantas heresias?
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120 | Mas passo esta matéria perigosaE tornemos à costa debuxada.Já com esta cidade tão famosaSe faz curva a Gangética enseada;Corre Narsinga, rica e poderosa;Corre Orixa, de roupas abastada;No fundo da enseada, o ilustre rioGanges vem ao salgado senhorio;
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121 | Ganges, no qual os seus habitadoresMorrem banhados, tendo por certezaQue, inda que sejam grandes pecadores,Esta água santa os lava e dá pureza.Vê Catigão, cidade das milhoresDe Bengala província, que se prezaDe abundante. Mas olha que está postaPera o Austro, daqui virada, a costa.
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122 | Olha o reino Arracão; olha o assentoDe Pegu, que já monstros povoaram,Monstros filhos do feio ajuntamentoDüa mulher e um cão, que sós se acharam.Aqui soante arame no instrumentoDa geração costumam, o que usaramPor manha da Rainha que, inventandoTal uso, deitou fora o error nefando.
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123 | Olha Tavai cidade, onde começaDe Sião largo o império tão comprido;Tenassari, Quedá, que é só cabeçaDas que pimenta ali têm produzido.Mais avante fareis que se conheçaMalaca por empório ennobrecido,Onde toda a província do mar grandeSuas mercadorias ricas mande.
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124 | Dizem que desta terra co as possantesOndas o mar, entrando, dividiuA nobre ilha Samatra, que já d'antesJuntas ambas a gente antiga viu.Quersoneso foi dita; e das prestantesVeias d'ouro que a terra produziu,'Aurea', por epitéto lhe ajuntaram;Alguns que fosse Ofir imaginaram.
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125 | Mas, na ponta da terra, CingapuraVerás, onde o caminho às naus se estreita;Daqui tornando a costa à Cinosura,Se encurva e pera a Aurora se endireita.Vês Pam, Patane, reinos, e a longuraDe Sião, que estes e outros mais sujeita;Olha o rio Menão, que se derramaDo grande lago que Chiamai se chama.
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126 | Vês neste grão terreno os diferentesNomes de mil nações, nunca sabidas:Os Laos, em terra e número potentes;Avás, Bramás, por serras tão compridas;Vê nos remotos montes outras gentes,Que Gueos se chamam, de selvages vidas;Humana carne comem, mas a suaPintam com ferro ardente, usança crua.
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127 | Vês, passa por Camboja Mecom rio,Que capitão das águas se interpreta;Tantas recebe d' outro só no Estio,Que alaga os campos largos e inquieta;Tem as enchentes quais o Nilo frio;A gente dele crê, como indiscreta,Que pena e glória têm, despois de morte,Os brutos animais de toda sorte.
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128 | Este receberá, plácido e brando,No seu regaço os Cantos que molhadosVêm do naufrágio triste e miserando,Dos procelosos baxos escapados,Das fomes, dos perigos grandes, quandoSerá o injusto mando executadoNaquele cuja Lira sonorosaSerá mais afamada que ditosa.
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129 | Vês, corre a costa que Champá se chama,Cuja mata é do pau cheiroso ornada;Vês Cauchichina está, de escura fama,E de Ainão vê a incógnita enseada;Aqui o soberbo Império, que se afamaCom terras e riqueza não cuidada,Da China corre, e ocupa o senhorioDesde o Trópico ardente ao Cinto frio.
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130 | Olha o muro e edifício nunca crido,Que entre um império e o outro se edifica,Certíssimo sinal, e conhecido,Da potência real, soberba e rica.Estes, o Rei que têm, não foi nacidoPríncipe, nem dos pais aos filhos fica,Mas elegem aquele que é famosoPor cavaleiro, sábio e virtuoso.
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131 | Inda outra muita terra se te escondeAté que venha o tempo de mostrar-se;Mas não deixes no mar as Ilhas ondeA Natureza quis mais afamar-se:Esta, meia escondida, que respondeDe longe à China, donde vem buscar-se,É Japão, onde nace a prata fina,Que ilustrada será co a Lei divina.
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132 | Olha cá pelos mares do OrienteÁs infinitas Ilhas espalhadas:Vê Tidore e Ternate, co ferventeCume, que lança as flamas ondeadas.As árvores verás do cravo ardente,Co sangue Português inda compradas.Aqui há as áureas aves, que não decemNunca à terra e só mortas aparecem.
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133 | Olha de Banda as Ilhas, que se esmaltamDa vária cor que pinta o roxo fruto;Às aves variadas, que ali saltam,Da verde noz tomando seu tributo.Olha também Bornéu, onde não faltamLágrimas no licor coalhado e enxutoDas árvores, que cânfora é chamado,Com que da Ilha o nome é celebrado.
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134 | Ali também Timor, que o lenho mandaSândalo, salutífero e cheiroso;Olha a Sunda, tão larga que üa bandaEsconde pera o Sul dificultoso;A gente do Sertão, que as terras anda,Um rio diz que tem miraculoso,Que, por onde ele só, sem outro, vai,Converte em pedra o pau que nele cai.
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135 | Vê naquela que o tempo tornou Ilha,Que também flamas trémulas vapora,A fonte que óleo mana, e a maravilhaDo cheiroso licor que o tronco chora,- Cheiroso, mais que quanto estila a filhaDe Ciniras na Arábia, onde ela mora;E vê que, tendo quanto as outras têm,Branda seda e fino ouro dá também.
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136 | Olha, em Ceilão, que o monte se alevantaTanto que as nuvens passa ou a vista engana;Os naturais o têm por cousa santa,Pola pedra onde está a pegada humana.Nas ilhas de Maldiva nace a prantaNo profundo das águas, soberana,Cujo pomo contra o veneno urgenteÉ tido por antídoto excelente.
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137 | Verás defronte estar do Roxo EstreitoSocotorá, co amaro aloé famosa;Outras ilhas, no mar também sujeitoA vós, na costa de África arenosa,Onde sai do cheiro mais perfeitoA massa, ao mundo oculta e preciosa.De São Lourenço vê a Ilha afamada,Que Madagáscar é dalguns chamada.
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138 | Eis aqui as novas partes do OrienteQue vós outros agora ao mundo dais,Abrindo a porta ao vasto mar patente,Que com tão forte peito navegais.Mas é também razão que, no Ponente,Dum Lusitano um feito inda vejais,Que, de seu Rei mostrando-se agravado,Caminho há-de fazer nunca cuidado.
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139 | Vedes a grande terra que continaVai de Calisto ao seu contrário Pólo,Que soberba a fará a luzente minaDo metal que a cor tem do louro Apolo.Castela, vossa amiga, será dinaDe lançar-lhe o colar ao rudo colo.Varias províncias tem de várias gentes,Em ritos e costumes, diferentes.
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140 | Mas cá onde mais se alarga, ali tereisParte também, co pau vermelho nota;De Santa Cruz o nome lhe poreis;Descobri-la-á a primeira vossa frota.Ao longo desta costa, que tereis,Irá buscando a parte mais remotaO Magalhães, no feito, com verdade,Português, porém não na lealdade.
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141 | Dês que passar a via mais que meiaQue ao Antártico Pólo vai da Linha,Düa estatura quási giganteiaHomens verá, da terra ali vizinha;E mais avante o Estreito que se arreiaCo nome dele agora, o qual caminhaPera outro mar e terra que fica ondeCom suas frias asas o Austro a esconde.
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142 | Até'aqui Portugueses concedidoVos é saberdes os futuros feitosQue, pelo mar que já deixais sabido,Virão fazer barões de fortes peitos.Agora, pois que tendes aprendidoTrabalhos que vos façam ser aceitosAs eternas esposas e fermosas,Que coroas vos tecem gloriosas,
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143 | Podeis-vos embarcar, que tendes ventoE mar tranquilo, pera a pátria amada.Assi lhe disse; e logo movimentoFazem da Ilha alegre e namorada.Levam refresco e nobre mantimento;Levam a companhia desejadaDas Ninfas, que hão-de ter eternamente,Por mais tempo que o Sol o mundo aquente.
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144 | Assi foram cortando o mar sereno,Com vento sempre manso e nunca irado,Até que houveram vista do terrenoEm que naceram, sempre desejado.Entraram pela foz do Tejo ameno,E à sua pátria e Rei temido e amadoO prémio e glória dão por que mandou,E com títulos novos se ilustrou.
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145 | Nô mais, Musa, nô mais, que a Lira tenhoDestemperada e a voz enrouquecida,E não do canto, mas de ver que venhoCantar a gente surda e endurecida.O favor com que mais se acende o engenhoNão no dá a pátria, não, que está metidaNo gosto da cobiça e na rudezaDüa austera, apagada e vil tristeza.
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146 | E não sei por que influxo de DestinoNão tem um ledo orgulho e geral gosto,Que os ânimos levanta de continoA ter pera trabalhos ledo o rosto.Por isso vós, ó Rei, que por divinoConselho estais no régio sólio posto,Olhai que sois (e vede as outras gentes)Senhor só de vassalos excelentes.
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147 | Olhai que ledos vão, por várias vias,Quais rompentes liões e bravos touros,Dando os corpos a fomes e vigias,A ferro, a fogo, a setas e pelouros,A quentes regiões, a plagas frias,A golpes de Idolátras e de Mouros,A perigos incógnitos do mundo,A naufrágios, a pexes, ao profundo.
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148 | Por vos servir, a tudo aparelhados;De vós tão longe, sempre obedientes;A quaisquer vossos ásperos mandados,Sem dar reposta, prontos e contentes.Só com saber que são de vós olhados,Demónios infernais, negros e ardentes,Cometerão convosco, e não duvidoQue vencedor vos façam, não vencido.
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149 | Favorecei-os logo, e alegrai-osCom a presença e leda humanidade;De rigorosas leis desalivai-os,Que assi se abre o caminho à santidade.Os mais exprimentados levantai-os,Se, com a experiência, têm bondadePera vosso conselho, pois que sabemO como, o quando, e onde as cousas cabem.
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150 | Todos favorecei em seus ofícios,Segundo têm das vidas o talento;Tenham Religiosos exercíciosDe rogarem, por vosso regimento,Com jejuns, disciplina, pelos víciosComuns; toda ambição terão por vento,Que o bom Religioso verdadeiroGlória vã não pretende nem dinheiro.
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151 | Os Cavaleiros tende em muita estima,Pois com seu sangue intrépido e ferventeEstendem não sòmente a Lei de cima,Mas inda vosso Império preminente.Pois aqueles que a tão remoto climaVos vão servir, com passo diligente,Dous inimigos vencem: uns, os vivos,E (o que é mais) os trabalhos excessivos.
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152 | Fazei, Senhor, que nunca os admiradosAlemães, Galos, Ítalos e Ingleses,Possam dizer que são pera mandados,Mais que pera mandar, os Portugueses.Tomai conselho só d'exprimentadosQue viram largos anos, largos meses,Que, posto que em cientes muito cabe.Mais em particular o experto sabe.
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153 | De Formião, filósofo elegante,Vereis como Anibal escarnecia,Quando das artes bélicas, dianteDele, com larga voz tratava e lia.A disciplina militar prestanteNão se aprende, Senhor, na fantasia,Sonhando, imaginando ou estudando,Senão vendo, tratando e pelejando.
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154 | Mas eu que falo, humilde, baxo e rudo,De vós não conhecido nem sonhado?Da boca dos pequenos sei, contudo,Que o louvor sai às vezes acabado.Tem me falta na vida honesto estudo,Com longa experiência misturado,Nem engenho, que aqui vereis presente,Cousas que juntas se acham raramente.
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155 | Pera servir-vos, braço às armas feito,Pera cantar-vos, mente às Musas dada;Só me falece ser a vós aceito,De quem virtude deve ser prezada.Se me isto o Céu concede, e o vosso peitoDina empresa tomar de ser cantada,Como a pres[s]aga mente vaticinaOlhando a vossa inclinação divina,
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156 | Ou fazendo que, mais que a de Medusa,A vista vossa tema o monte Atlante,Ou rompendo nos campos de AmpelusaOs muros de Marrocos e Trudante,A minha já estimada e leda MusaFico que em todo o mundo de vós cante,De sorte que Alexandro em vós se veja,Sem à dita de Aquiles ter enveja.
FIM. |