Luís Vaz de Camões
1524/25 -1580
Os Lusíadas
Canto II
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Canto segundo.
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1 | Já neste tempo o lúcido Planeta,Que as horas vai do dia distinguindo,Chegava à desejada e lenta meta,A luz celeste às gentes encobrindo,E da casa marítima secretaLhe estava o Deus Noturno a porta abrindo,Quando as infidas gentes se chegaramAs naus, que pouco havia que ancoraram.
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2 | Dentre eles um, que traz encomendadoO mortífero engano, assim dizia:Capitão valeroso, que cortadoTens de Neptuno o reino e salsa via,O Rei que manda esta ilha, alvoroçadoDa vinda tua, tem tanta alegria,Que não deseja mais que agasalhar-te,Ver-te, e do necessário reformar-te.
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3 | E porque está em extremo desejosoDe te ver, como cousa nomeada,Te roga que, de nada receoso,Entres a barra, tu com toda armada:E porque do caminho trabalhosoTrarás a gente débil e cansada,Diz que na terra podes reformá-la,Que a natureza obriga a desejá-la.
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4 | E se buscando vás mercadoriaQue produze o aurífero Levante,Canela, cravo, ardente especiaria,Ou droga salutífera e prestante;Ou se queres luzente pedraria,O rubi fino, o rígido diamante,Daqui levarás tudo tão sobejoCom que faças o fim a teu desejo.
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5 | Ao mensageiro o Capitão respondeAs palavras do Rei agradecendo:E diz que, porque o Sol no mar se esconde,Não entra para dentro, obedecendo;Porém que, como a luz mostrar por ondeVá sem perigo a frota, não temendo,Cumprirá sem receio seu mandado,Que a mais por tal senhor está obrigado.
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6 | Pergunta-lhe depois, se estão na terraCristãos, como o piloto lhe dizia;O mensageiro astuto, que não erra,Lhe diz, que a mais da gente em Cristo cria.Desta sorte do peito lhe desterraToda a suspeita e cauta fantasia;Por onde o Capitão seguramenteSe fia da infiel e falsa gente.
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7 | E de alguns que trazia condenadosPor culpas e por feitos vergonhosos,Por que pudessem ser aventuradosEm casos desta sorte duvidosos,Manda dous mais sagazes, ensaiados,Por que notem dos Mouros enganososA cidade e poder, e por que vejamOs Cristãos, que só tanto ver desejam.
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8 | E por estes ao Rei presentes manda,Por que a boa vontade, que mostrava,Tenha firme, segura, limpa e branda;A qual bem ao contrário em tudo estava.Já a companhia pérfida e nefandaDas naus se despedia e o mar cortava:Foram com gestos ledos e fingidos,Os dous da frota em terra recebidos.
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9 | E depois que ao Rei apresentaram,Co'o recado, os presentes que traziam,A cidade correram, e notaramMuito menos daquilo que queriam;Que os Mouros cautelosos se guardarasDe lhes mostrarem tudo o que pediam:Que onde reina a malícia, está o receio,Que a faz imaginar no peito alheio.
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10 | Mas aquele que sempre a mocidadeTem no rosto perpétua, e foi nascidoDe duas mães, que urdia a falsidadePor ver o navegante destruído,Estava numa casa da cidade,Com rosto humano e hábito fingido,Mostrando-se Cristão, e fabricavaUm altar sumptuoso, que adorava.
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11 | Ali tinha em retrato afiguradaDo alto e Santo Espírito a pintura:A cândida pombinha debuxadaSobre a única Fénix, Virgem pura;A companhia santa está pintadaDos doze, tão torvados na figura,Como os que, só das línguas que caíram,De fogo, várias línguas referiram.
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12 | Aqui os dous companheiros conduzidosOnde com este engano Baco estava,Põem em terra os giolhos, e os sentidosNaquele Deus que o mundo governava.Os cheiros excelentes, produzidosNa Pancaia odorífera, queimavaO Tioneu, e assim por derradeiroO falso Deus adora o verdadeiro.
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13 | Aqui foram de noite agasalhados,Com todo o bom e honesto tratamento,Os dous Cristãos, não vendo que enganadosOs tinha o falso e santo fingimento.Mas assim como os raios espalhadosDo Sol foram no mundo, e num momentoApareceu no rúbido horizonteDa moça de Titão a roxa fronte,
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14 | Tornam da terra os Mouros co'o recadoDo Rei, para que entrassem, e consigoOs dous que o Capitão tinha mandado,A quem se o Rei mostrou sincero amigo;E sendo o Português certificadoDe não haver receio de perigo,E que gente de Cristo em terra havia,Dentro no salso rio entrar queria.
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15 | Dizem-lhe os que mandou, que em terraSacras aras e sacerdote sinto; viramQue ali se agasalharam o dormiram,Enquanto a luz cobriu o escuro manto;E que no Rei e gentes não sentiramSenão contentamento e gosto tanto,Que não podia certo haver suspeitaNuma mostra tão clara e tão perfeita.
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16 | Com isto o nobre Gama recebiaAlegremente os Mouros que subiam;Que levemente um ânimo se fiaDe mostras, que tão certas pareciam.A nau da gente pérfida se enchia,Deixando a bordo os barcos que traziam.Alegres vinham todos, porque crêmQue a presa desejada certa têm.
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17 | Na terra, cautamente aparelhavamArmas e munições que, como vissemQue no rio os navios ancoravam,Neles ousadamente se subissem;E, nesta treição determinavamQue os de Luso de todo destruíssem,E que incautos pagassem deste jeitoO mal que em Moçambique tinham feito.
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18 | As âncoras tenaces vão levandoCom a náutica grita costumada;Da proa as velas sós ao vento dandoInclinam para a barra abalizada.Mas a linda Ericina, que guardandoAndava sempre a gente assinalada,Vendo a cilada grande, e tão secreta,Voa do Céu ao mar como uma seta.
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19 | Convoca as alvas filhas de Nereu,Com toda a mais cerúlea companhia,Que, porque no salgado mar nasceu,Das águas o poder lhe obedecia.E propondo-lhe a causa a que desceu,Com todas juntamente se partia,Para estorvar que a armada não chegasseAonde para sempre se acabasse.
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20 | Já na água erguendo vão, com grande pressa,Com as argênteas caudas branca escuma;Cloto eo'o peito corta e atravessaCom mais furor o mar do que costuma.Salta Nise, Nerine se arremessaPor cima da água crespa, em força suma.Abrem caminho as ondas encurvadasDe temor das Nereidas apressadas.
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21 | Nos ombros de um Tritão, com gesto aceso,Vai a linda Dione furiosa;Não sente quem a leva o doce peso,De soberbo com carga tão formosa.Já chegam perto donde o vento tesoEnche as velas da frota belicosa;Repartem-se e rodeiam nesse instanteAs naus ligeiras, que iam por diante.
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22 | Põe-se a Deusa com outras em direitoDa proa capitaina, e ali fechandoO caminho da barra, estão de jeito,Que em vão assopra o vento, a vela inchando.Põem no madeiro duro o brando peito,Para detrás a forte nau forçando;Outras em derredor levando-a estavam,E da barra inimiga a desviavam.
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23 | Quais para a cova as próvidas formigas,Levando o peso grande acomodado,As forças exercitam, de inimigasDo inimigo inverno congelado;Ali são seus trabalhos e fadigas,Ali mostram vigor nunca esperado:Tais andavam as Ninfas estorvandoA gente Portuguesa o fim nefando.
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24 | Torna para detrás a nau forçada,Apesar dos que leva, que gritandoMareiam velas; ferve a gente irada,O leme a um bordo e a outro atravessando;O mestre astuto em vão da popa brada,Vendo como diante ameaçandoOs estava um marítimo penedo,Que de quebrar-lhe a nau lhe mete medo.
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25 | A celeuma medonha se alevantaNo rudo marinheiro que trabalha;O grande estrondo a Maura gente espanta,Como se vissem hórrida batalha;Não sabem a razão de fúria tanta,Não sabem nesta pressa quem lhe valha;Cuidam que seus enganos são sabidos,E que hão de ser por isso aqui punidos.
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26 | Ei-los subitamente se lançavamA seus batéis velozes que traziam;Outros em cima o mar alevantavam,Saltando n'água, a nado se acolhiam;De um bordo e doutro súbito saltavam,Que o medo os compelia do que viam;Que antes querem ao mar aventurar-seQue nas mãos inimigas entregar-se.
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27 | Assim como em selvática alagoaAs rãs, no tempo antigo Lícia gente,Se sentem por ventura vir pessoa,Estando fora da água incautamente,Daqui e dali saltando, o charco soa,Por fugir do perigo que se sente,E acolhendo-se ao couto que conhecem,Sós as cabeças na água lhe aparecem:
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28 | Assim fogem os Mouros; e o piloto,Que ao perigo grande as naus guiara,Crendo que seu engano estava noto,Também foge, saltando na água amara.Mas, por não darem no penedo imoto,Onde percam a vida doce e cara,A âncora solta logo a capitaina,Qualquer das outras junto dela amaina.
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29 | Vendo o Gama, atentado, a estranhezaDos Mouros, não cuidada, e juntamenteO piloto fugir-lhe com presteza,Entende o que ordenava a bruta gente;E vendo, sem contraste e sem bravezaDos ventos, ou das águas sem corrente,Que a nau passar avante não podia,Havendo-o por milagre, assim dizia:
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30 | Ó caso grande, estranho e não cuidado,Ó milagre claríssimo e evidente,Ó descoberto engano inopinado,Ó pérfida, inimiga e falsa gente!Quem poderá do mal aparelhadoLivrar-se sem perigo sabiamente,Se lá de cima a Guarda soberanaNão acudir à fraca força humana?
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31 | Bem nos mostra a divina ProvidênciaDestes portos a pouca segurança;Bem claro temos visto na aparência,Que era enganada a nossa confiança.Mas pois saber humano nem prudênciaEnganos tão fingidos não alcança,Ó tu, Guarda Divina, tem cuidadoDe quem sem ti não pode ser guardado!
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32 | E se te move tanto a piedadeDesta mísera gente peregrina,Que só por tua altíssima bondade,Da gente a salvas pérfida e malina,Nalgum porto seguro de verdadeConduzir-nos já agora determina,Ou nos amostra a terra que buscamos,Pois só por teu serviço navegamos.
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33 | Ouviu-lhe essas palavras piedosasA formosa Dione, e comovida,Dentre as Ninfas se vai, que saudosasFicaram desta súbita partida.Já penetra as Estrelas luminosas,Já na terceira Esfera recebidaAvante passa, e lá no sexto Céu,Para onde estava o Padre, se moveu.
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34 | E como ia afrontada do caminho,Tão formosa no gesto se mostrava,Que as Estrelas e o Céu e o Ar vizinho,E tudo quanto a via namorava.Dos olhos, onde faz seu filho o ninho,Uns espíritos vivos inspirava,Com que os Pólos gelados acendia,E tornava do Fogo a esfera fria.
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35 | E por mais namorar o soberanoPadre, de quem foi sempre amada e eriça,Se lhe apresenta assim como ao Troiano,Na selva Idea, já se apresentara.Se a vira o caçador, que o vulto humanoPerdeu, vendo Diana na água clara,Nunca os famintos galgos o mataram,Que primeiro desejos o acabaram.
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36 | Os crespos fios d'ouro se esparziamPelo colo, que a neve escurecia;Andando, as lácteas tetas lhe tremiam,Com quem Amor brincava, e não se via;Da alva petrina flamas lhe saíam,Onde o Menino as almas acendia;Pelas lisas colunas lhe trepavamDesejos, que como hera se enrolavam.
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37 | C'um delgado sendal as partes cobre,De quem vergonha é natural reparo,Porém nem tudo esconde, nem descobre,O véu, dos roxos lírios pouco avaro;Mas, para que o desejo acenda o dobre,Lhe põe diante aquele objeto raro.Já se sentem no Céu, por toda a parte,Ciúmes em Vulcano, amor em Marte.
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38 | E mostrando no angélico semblanteCo'o riso uma tristeza misturada,Como dama que foi do incauto amanteEm brincos amorosos mal tratada,Que se aqueixa e se ri num mesmo instante,E se torna entre alegre magoada,Desta arte a Deusa, a quem nenhuma iguala,Mais mimosa que triste ao Padre fala:
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39 | Sempre eu cuidei, ó Padre poderoso,Que, para as cousas que eu do peito amasse,Te achasse brando, afábil e amoroso,Posto que a algum contrário lhe pesasse;Mas, pois que contra mim te vejo iroso,Sem que to merecesse, nem te errasse,Faça-se como Baco determina;Assentarei enfim que fui mofina.
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40 | Este povo que é meu, por quem derramoAs lágrimas que em vão caídas vejo,Que assaz de mal lhe quero, pois que o amo,Sendo tu tanto contra meu desejo!Por ele a ti rogando choro e bramo,E contra minha dita enfim pelejo.Ora pois, porque o amo é mal tratado,Quero-lhe querer mal, será guardado.
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41 | Mas moura enfim nas mãos das brutas gentes,Que pois eu fui... E nisto, de mimosa,O rosto banha em lágrimas ardentes,Como co'o orvalho fica a fresca rosa.Calada um pouco, como se entre os dentesSe lhe impedira a fala piedosa,Torna a segui-la; e indo por diante,Lhe atalha o poderoso e grão Tonante.
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42 | E destas brandas mostras comovido,Que moveram de um tigre o peito duro,Co'o vulto alegre, qual do Céu subido,Torna sereno e claro o ar escuro,As lágrimas lhe alimpa, e acendidoNa face a beija, e abraça o colo puro;De modo que dali, se só se achara,Outro novo Cupido se gerara.
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43 | E co'o seu apertando o rosto amado,Que os soluços e lágrimas aumenta,Como menino da ama castigado,Que quem no afaga o choro lhe acrescente,Por lhe pôr em sossego o peito irado,Muitos casos futuros lhe apresenta.Dos fados as entranhas revolvendo,Desta maneira enfim lhe está dizendo:
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44 | Formosa filha minha, não temaisPerigo algum nos vossos Lusitanos,Nem que ninguém comigo possa mais,Que esses chorosos olhos soberanos;Que eu vos prometo, filha, que vejaisEsquecerem-se Gregos e Romanos,Pelos ilustres feitos que esta genteHá-de fazer nas partes do Oriente.
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45 | Que se o facundo Ulisses escapouDe ser na Ogígia ilha eterno escravo,E se Antenor os seios penetrouIlíricos e a fonte de Timavo;E se o piedoso Eneias navegouDe Cila e de Caríbdis o mar bravo,Os vossos, mores cousas atentando,Novos mundos ao mundo irão mostrando.
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46 | Fortalezas, cidades e altos muros,Por eles vereis, filha, edificados;Os Turcos belacíssimos e duros,Deles sempre vereis desbaratados.Os Reis da índia, livres e seguros,Vereis ao Rei potente sojugados;E por eles, de tudo enfim senhores,Serão dadas na terra leis melhores.
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47 | Vereis este, que agora pressurosoPor tantos medos o Indo vai buscando,Tremer dele Neptuno, de medrosoSem vento suas águas encrespando.Ó caso nunca visto e milagroso,Que trema e ferva o mar, em calma estando!Ó gente forte e de altos pensamentos,Que também dela hão medo os Elementos!
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48 | Vereis a terra, que a água lhe tolhia,Que inda há-de ser um porto mui decente,Em que vão descansar da longa viaAs naus que navegarem do Ocidente.Toda esta costa enfim, que agora urdiaO mortífero engano, obedienteLhe pagará tributos, conhecendoNão poder resistir ao Luso horrendo.
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49 | E vereis o mar Roxo, tão famoso,Tornar-se-lhe amarelo, de enfiado;Vereis de Ormuz o Reino poderosoDuas vezes tomado e sojugado.Ali vereis o Mouro furiosoDe suas mesmas setas traspassado:Que quem vai contra os vossos, claro vejaQue, se resiste, contra si peleja.
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50 | Vereis a inexpugnábil Dio forte,Que dous cercos terá, dos vossos sendo.Ali se mostrará seu preço e sorte,Feitos de armas grandíssimos fazendo.Invejoso vereis o grão MavorteDo peito Lusitano fero e horrendo:Do Mouro ali verão que a voz extremaDo falso Mahamede ao Céu blasfema.
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51 | Goa vereis aos Mouros ser tomada,A qual virá depois a ser senhoraDe todo o Oriente, e sublimadaCo'os triunfos da gente vencedora.Ali soberba, altiva, e exalçada,Ao Gentio, que os ídolos adora,Duro freio porá, e a toda a terraQue cuidar de fazer aos vossos guerra.
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52 | Vereis a fortaleza sustentar-seDe Cananor, com pouca força e gente;E vereis Calecu desbaratar-se,Cidade populosa e tão potente:E vereis em Cochim assinalar-seTanto um peito soberbo e insolente,Que cítara jamais cantou vitória,Que assim mereça eterno nome e glória.
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53 | Nunca com Marte instructo e furioso,Se viu ferver Leucate, quando AugustoNas civis Actias guerras animoso,O Capitão venceu Romano injusto,Que dos povos da Aurora, e do famosoNilo, e do Bactra Cítico e robustoA vitória trazia, e presa rica,Preso na Egípcia linda e nego pudica.
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54 | Como vereis o mar fervendo acesoColos incêndios dos vossos pelejando,Levando o Idololatra, e o Mouro preso,De nações diferentes triunfando.E sujeita a rica Áurea Quersoneso,Até ao longínquo China navegando,E as ilhas mais remotas do Oriente,Ser-lhe-á todo o Oceano obediente.
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55 | De modo, filha minha, que de jeitoAmostrarão esforço mais que humano,Que nunca se verá tão forte peito,Do Gangético mar ao Gaditano,Nem das Boreais ondas ao Estreito,Que mostrou o agravado Lusitano,Posto que em todo o mundo, de afrontados,Ressuscitassem todos os passados.
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56 | Como isto disse, manda o consagradoFilho de Maia à Terra, por que tenhaUm pacífico porto o sossegado,Para onde sem receio a frota venha;F, para que em Mombaça, aventurado,O forte Capitão se não detenha,Lhe manda mais, que em sonhos lhe mostraA terra, onde quieto repousasse.
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57 | Já pelo ar o Cileneu voava;Com as asas nos pés à Terra desce;Sua vara fatal na mão levava,Com que os olhos cansados adormece:Com esta, as tristes almas revocavaDo Inferno, e o vento lhe obedece.Na cabeça o galero costumado.E desta arte a Melinde foi chegado.
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58 | Consigo a Fama leva, por que digaDo Lusitano o preço grande e raro,Que o nome ilustre a um certo amor obrigaE faz, a quem o tem, amado e caro.Desta arte vai fazendo a gente amiga,Co rumor famosíssimo, e perclaro.Já Melinde em desejos arde todoDe ver da gente forte o gesto e modo.
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59 | Dali para Mombaça logo parte,Aonde as naus estavam temerosas,Para que à gente mande que se aparteDa barra amiga e terras suspeitosas:Porque mui pouco val esforço e arte,Contra infernais vontades enganosas;Pouco val coração, astúcia e siso,Se lá dos Céus não vem celeste aviso.
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60 | No feio caminho a noite tinha anelado,E, as estrelas no Céu, coa luz alhea,Tinham o largo Mundo alumiado;E só co'o sono a gente se recreia.O Capitão ilustre, já cansadoDe vigiar a noite que arreceia,Breve repouso então aos olhos dava,A outra gente a quartos vigiava;
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61 | Quando Mercúrio em sonhos lhe aparece,Dizendo: Fuge, fuge, Lusitano,Da cilada que o Rei malvado tece,Por te trazer ao fim, e extremo dano;Fuge, que o vento, e o Céu te favorece;Sereno o tempo tens e o Oceano,E outro Rei mais amigo, noutra parte,Onde podes seguro agasalhar-te.
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62 | Não tens aqui senão aparelhadoO hospício que o cru Diomedes dava,Fazendo ser manjar acostumadoDe cavalos a gente que hospedava;As aras de Busíris infamado,Onde os hóspedes tristes imolava,Terás certas aqui, se muito esperas.Fuge das gentes pérfidas e feras.
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63 | Vai-te ao longo da costa discorrendo,E outra terra acharás de mais verdade,Lá quase junto donde o Sol ardendoIguala o dia e noite em quantidade;Ali tua frota alegre recebendoUm Rei, com muitas obras de amizade,,Gasalhado seguro te daria,E, para a índia, certa e sábia guia.
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64 | Isto Mercúrio disse, e o sono levaAo Capitão, que com mui grande espantoAcorda, e vê ferida a escura trevaDe uma súbita luz e raio santo.E vendo claro quanto lhe relevaNão se deter na terra iníqua tanto,Com novo espírito ao mestre seu mandavaQue as velas desse ao vento que assopravam.
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65 | Dai velas, disse, dai ao largo vento,Que o Céu nos favorece e Deus o manda;Que um mensageiro vi do claro assentoQue só em favor de nossos passos anda.Alevanta-se nisto o movimentoDos marinheiros, de uma e de outra banda;Levam gritando as âncoras acima,Mostrando a ruda força, que se estima.
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66 | Neste tempo, que as âncoras levavam,Na sombra escura os Mouros escondidosMansamente as amarras lhe cortavam,Por serem, dando à costa, destruídos;Mas com vista de linces vigiavamOs Portugueses, sempre apercebidos.Eles, como acordados os sentiram,Voando, e não remando, lhe fugiram.
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67 | Mas já as agudas proas apartandoIam as vias húmidas de argento;Assopra-lhe galerno o vento, e brando,Com suave e seguro movimento.Nos perigos passados vão falando,Que mal se perderão do pensamentoOs casos grandes, donde em tanto apertoA vida em salvo escapa por acerto.
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68 | Tinha uma volta dado o Sol ardenteE noutro começava, quando viramAo longe deus navios, brandamenteCo'os ventos navegando, que respiram:Porque haviam de ser da Maura gente,Para eles arribando, as velas viram:Um, de temor do mal que arreceava,Por se salvar a gente à costa dava.
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69 | Não é o outro que fica tão manhoso;Mas nas mãos vai cair do Lusitano,Sem o rigor de Marte furioso,E sem a fúria horrenda de Vulcano;Que como fosse débil e medrosoDa pouca gente o fraco peito humano,Não teve resistência; e se a tivera,Mais dano resistindo recebera.
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70 | E como o Gama muito desejassePiloto para a Índia que buscava,Cuidou que entre estes Mouros o tomasse;Mas não lhe sucedeu como cuidava,Que nenhum deles há que lhe ensinasseA que parte dos céus a Índia estava;Porém dizem-lhe todos, que tem pertoMelinde, onde achará piloto certo.
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71 | Louvam do Rei os Mouros a bondade,Condição liberal, sincero peito,Magnificência grande e humanidade,Com partes de grandíssimo respeito.O Capitão o assela por verdade,Porque já lhe dissera, deste jeito,Cileneu em sonhos; e partiaPara onde o sonho e o Mouro lhe dizia.
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72 | Era no tempo alegre, quando entravaNo roubador de Europa a luz Febeia,Quando um e outro corno lhe aquentava,E Flora derramava o de Amalteia:A memória do dia renovavaO pressuroso Sol, que o Céu rodeia,Em que Aquele, a quem tudo está sujeito,O selo pôs a quanto tinha feito;
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73 | Quando chegava a frota àquela parte,Onde o Reino Melinde já se via,De toldos adornada, e leda de arteQue bem mostra estimar o santo dia.Treme a bandeira, voa o estandarte,A cor purpúrea ao longe aparecia;Soam os atambores o pandeiros,E assim entravam ledos e guerreiros.
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74 | Enche-se toda a praia MelindanaDa gente que vem ver a leda armada,Gente mais verdadeira, e mais humana,Que toda a doutra terra atrás deixada.Surge diante a frota Lusitana,Pega no fundo a âncora pesada;Mandam fora um dos Mouros que tomaram,Por quem sua vinda ao Rei manifestaram.
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75 | O Rei, que já sabia da nobrezaQue tanto os Portugueses engrandece,Tomarem o seu porto tanto preza,Quanto a gente fortíssima merece:E com verdadeiro ânimo e pureza,Que os peitos generosos enobrece,Lhe manda rogar muito que saíssem,Para que de seus reinos se servissem.
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76 | São oferecimentos verdadeiros,E palavras sinceras, não dobradas,As que o Rei manda aos nobres cavaleiros,Que tanto mar e terras tem passadas.Manda-lhe mais lanígeros carneiros,E galinhas domésticas cevadas,Com as frutas, que então na terra havia;E a vontade à dádiva excedia.
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77 | Recebe o Capitão alegrementeO mensageiro ledo e seu recado;E logo manda ao Rei outro presente,Que de longe trazia aparelhado:Escarlata purpúrea, cor ardente,O ramoso coral, fino e prezado,Que debaixo das águas mole cresce,E como é fora delas se endurece.
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78 | Manda mais um, na prática elegante,Que co'o Rei nobre as pazes concertasse,E que de não sair naquele instanteDe suas naus em terra o desculpasse.Partido assim o embaixador prestante,Como na terra ao Rei se apresentasse,Com estilo que Palas lhe ensinava,Estas palavras tais falando orava:
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79 | Sublime Rei, a quem do Olimpo puroFoi da suma Justiça concedidoRefrear o soberbo povo duro,Não menos dele amado, que temido:Como porto mui forte e mui seguro,De todo o Oriente conhecido,Te vimos a buscar, para que achemosEm ti o remédio certo que queremos.
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80 | Não somos roubadores, que passandoPelas fracas cidades descuidadas,A ferro e a fogo as gentes vão matando,Por roubar-lhe as fazendas cobiçadas;Mas da soberba Europa navegando,Imos buscando as terras apartadasDa Índia grande e rica, por mandadoDe um Rei que temos, alto e sublimado.
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81 | Que geração tão dura há hi de gente,Que bárbaro costume e usança feia,Que não vedem os portos tão somente,Mas inda o hospício da deserta areia?Que má tenção, que peito em nós se sente,Que de tão pouca gente se arreceia?Que com laços armados, tão fingidos,Nos ordenassem ver-nos destruídos?
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82 | Mas tu, e quem mui certo confiamosAchar-se mais verdade, ó Rei benigno,E aquela certa ajuda em ti esperamos,Que teve o perdido Ítaco em Alcino,A teu porto seguro navegamos,Conduzidos do intérprete divino;Que, pois a ti nos manda, está mui claro,Que és de peito sincero, humano e raro.
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83 | E não cuides, ó Rei, que não saísseO nosso Capitão esclarecidoA ver-te, ou a servir-te, porque visseOu suspeitasse em ti peito fingido:Mas saberás que o fez, porque cumprisseO regimento, em tudo obedecido,De seu Rei, que lhe manda que não saia,Deixando a frota, em nenhum porto ou praia.
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84 | E porque é, de vassalos o exercício,Que os membros tem regidos da cabeça,Não quererás, pois tens de Rei o ofício,Que ninguém a seu Rei desobedeça;Mas as mercês e o grande benefício,Que ora acha em ti, promete que conheçaEm tudo aquilo que ele e os seus puderem,Enquanto os rios para o mar correrem.
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85 | Assim dizia; e todos juntamente,Uns com outros em prática falando,Louvavam muito o estâmago da gente,Que tantos céus e mares vai passando.E o Rei ilustre, o peito obedienteDos Portugueses na alma imaginando,Tinha por valor grande e mui subidoO do Rei que é tão longe obedecido.
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86 | E com risonha vista e ledo aspeito,Responde ao embaixador, que tanto estima:Toda a suspeita má tirai do peito,Nenhum frio temor em vós se imprima;Que vosso preço e obras são de jeitoPara vos ter o mundo em muita estima;E quem vos fez molesto tratamento,Não pode ter subido pensamento.
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87 | De não sair em terra toda a gente,Por observar a usada preminência,Ainda que me pese estranhamente,Em muito tenho a muita obediência;Mas, se lho o regimento não consente,Nem eu consentirei que a excelênciaDe peitos tão leais em si desfaça,Só porque a meu desejo satisfaça.
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88 | Porém, como a luz crástina chegadaAo mundo for, em minhas almadiasEu irei visitar a forte armada,Que ver tanto desejo, há tantos dias;E se vier do mar desbaratada,Do furioso vento e longas vias,Aqui terá, de limpos pensamentos,Piloto, munições e mantimentos.
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89 | Isto disse; e nas águas se escondiaO filho de Latona; e o mensageiroCoa embaixada alegre se partiaPara a frota, no seu batel ligeiro.Enchem-se os peitos todos de alegria.Por terem o remédio verdadeiroPara acharem a terra que buscavam;E assim ledos a noite festejavam.
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90 | Não faltam ali os raios de artifício,Os trêmulos cometas imitando;Fazem os bombardeiros seu ofício,O céu, a terra e as ondas atroando.Mostra-se dos Ciclopas o exercícioNas bombas que de fogo estão queimando;Outros com vozes, com que o céu feriam,Instrumentos altíssonos tangiam.
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91 | Respondem-lhe da terra juntamente,Co'o raio volteando, com zunido;Anda em giros no ar a roda ardente,Estoura o pó sulfúreo escondido.A grita se alevanta ao céu, da gente;O mar se via em fogos acendido,E não menos a terra; e assim festejaUm ao outro, a maneira de peleja.
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92 | Mas já o Céu inquieto revolvendo,As gentes incitava a seu trabalho,E já a mãe de Menon a luz trazendo,Ao sono longo punha certo atalho;Iam-se as sombras lentas desfazendo,Sobre as flores da terra em frio orvalho,Quando o Rei Melindano se embarcavaA ver a frota, que no mar estava.
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93 | Viam-se em derredor ferver as praiasDa gente, que a ver só concorre leda;Luzem da fina púrpura as cabaias,Lustram os panos da tecida seda;Em lugar das guerreiras azagaiasE do arco, que os cornos arremedaDa Lua, trazem ramos de palmeira,Dos que vencem, coroa verdadeira.
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94 | Um batel grande e largo, que toldadoVinha de sedas de diversas cores,Traz o Rei de Melinde, acompanhadoDe nobres e seu Reino e de senhores:Vem de ricos vestidos adornado,Segundo seus costumes e primores;Na cabeça uma fota guarnecidaDe ouro, e de seda e de algodão tecida.
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95 | Cabaia de Damasco rico e dino,Da Tíria cor, entre eles estimada,Um colar ao pescoço, de ouro fino,Onde a matéria da obra é superada,C'um resplendor reluze adamantino;Na cinta, a rica bem lavrada;Nas alparcas dos pés, em fim de tudo,Cobrem ouro e aljôfar ao veludo.
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96 | Com um redondo emparo alto de seda,Numa alta e dourada hástia enxerido,Um ministro à solar quentura veda.Que não ofenda e queime o Rei subido.Música traz na proa, estranha e leda,De áspero som, horríssono ao ouvido,De trombetas arcadas em redondo,Que, sem concerto, fazem rudo estrondo.
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97 | Não menos guarnecido o LusitanoNos seus batéis, da frota se partiaA receber no mar o Melindano,Com lustrosa e lograda companhia.Vestido o Gama vem ao modo Hispano,Mas Francesa era a roupa que vestia,De cetim da Adriática VenezaCarmesi, cor que a gente tanto preza:
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98 | De botões douro as mangas vêm tomadas,Onde o Sol reluzindo a vista cega;As calças soldadescas recamadasDo metal, que Fortuna a tantos nega,E com pontas do mesmo delicadasOs golpes do gibão ajunta e achega;Ao Itálico modo a áurea espada;Pluma na gorra, um pouco declinada.
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99 | Nos de sua companhia se mostravaDa tinta, que dá o múrice excelente,A vária cor, que os olhos alegrava,E a maneira do trajo diferente.Tal o formoso esmalte se notavaDos vestidos, olhados juntamente,Qual aparece o arco rutilanteDa bela Ninfa, filha de Taumante.
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100 | Sonorosas trombetas incitavamOs ânimos alegres, ressoando;Dos Mouros os batéis, o mar coalhavam,Os toldos pelas águas arrojando;As bombardas horríssonas bramavam,Com as nuvens de fumo o Sol tomando;Amiúdam-se os brados acendidos,Tapam com as mãos os Mouros os ouvidos.
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101 | Já no batel entrou do CapitãoO Rei, que nos seus braços o levava;Ele coa cortesia, que a razão(Por ser Rei) requeria, lhe falava.C'umas mostras de espanto e admiração,O Mouro o gesto e o modo lhe notava,Como quem em mui grande estima tinhaGente que de tão longe à índia vinha.
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102 | E com grandes palavras lhe ofereceTudo o que de seus Reinos lhe cumprisse,E que, se mantimento lhe falece,Como se próprio fosse, lho pedisse.Diz-lhe mais, que por fama bem conheceA gente Lusitana, sem que a visse;Que já ouviu dizer, que noutra terraCom gente de sua Lei tivesse guerra.
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103 | E como por toda África se soa,Lhe diz, os grandes feitos que fizeram,Quando nela ganharam a coroaDo Reino, onde as Hespéridas viveram;E com muitas palavras apregoaO menos que os de Luso mereceram,E o mais que pela fama o Rei sabia.Mas desta sorte o Gama respondia:
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104 | Ó tu, que só tiveste piedade,Rei benigno, da gente Lusitana,Que com tanta miséria e adversidadeDos mares experimenta a fúria insana;Aquela alta e divina Eternidade,Que o Céu revolve e rege a gente humana,Pois que de ti tais obras recebemos,Te pague o que nós outros não podemos.
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105 | Tu só, de todos quantos queima Apolo,Nos recebes em paz, cio mar profundo;Em ti dos ventos hórridos de EoloRefúgio achamos bom, fido e jocundo.Enquanto apascentar o largo PóloAs Estrelas, e o Sol der lume ao Mundo,Onde quer que eu viver, com fama e glóriaViverão teus louvores em memória.
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106 | Isto dizendo, os barcos vão remandoPara a frota, que o Mouro ver deseja;Vão as naus uma e uma rodeando,Porque de todas tudo note e veja.Mas para o céu Vulcano fuzilando,A frota coas bombardas o festeja,E as trombetas canoras lhe tangiam;Co'os anafis os Mouros respondiam.
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107 | Mas depois de ser tudo já notadoDo generoso Mouro, que pasmavaOuvindo o instrumento inusitado,Que tamanho terror em si mostrava,Mandava estar quieto e ancoradoN'água o batel ligeiro que os levava,Por falar de vagar co'o forte Gama,Nas cousas de que tem notícia e faina.
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108 | Em práticas o Mouro diferentesSe deleitava, perguntando agoraPelas guerras famosas e excelentesCo'o povo havidas, que a Mafoma adora;Agora lhe pergunta pelas gentesDe toda a Hespéria última, onde mora;Agora pelos povos seus vizinhos,Agora pelos úmidos caminhos.
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109 | Mas antes, valeroso Capitão,Nos conta, lhe dizia, diligente,Da terra tua o clima, e regiãoDo mundo onde morais distintamente;E assim de vossa antiga geração,E o princípio do Reino tão potente,Co'os sucessos das guerras do começo,Que, sem sabê-las, sei que são de preço.
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110 | E assim também nos conta dos rodeiosLongos, em que te traz o mar irado,Vendo os costumes bárbaros alheios.Que a nossa África ruda tem criado.Conta: que agora vêm co'os áureos freiosOs cavalos que o carro marchetadoDo novo Sol, da fria Aurora trazem,O vento dorme, o mar e as ondas jazem.
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111 | E não menos co'o tempo se pareceO desejo de ouvir-te o que contares;Que quem há, que por fama não conheceAs obras Portuguesas singulares?Não tanto desviado resplandeceDe nós o claro Sol, para julgaresQue os Melindanos têm tão rudo peito,Que não estimem muito um grande feito.
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112 | Cometeram soberbos os Gigantes,Com guerra vã, o Olimpo claro e puro;Tentou Pirítoo e Teseu, de ignorantes,O Reino de Plutão horrendo e escuro.Se houve feitos no mundo tão possantes,Não menos é trabalho ilustre e duro,Quanto foi cometer Inferno o Céu,Que outrem cometa a fúria de Nereu.
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113 | Queimou o sagrado templo de Diana,Do subtil Tesifónio fabricado,Heróstrato, por ser da gente humanaConhecido no mundo e nomeado:Se também com tais obras nos enganaO desejo de um nome avantajado,Mais razão há que queira eterna glóriaQuem faz obras tão dignas de memória.
FIM. |