Luís Vaz de Camões
1524/25 -1580
Os Lusíadas
Canto III
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Canto terceiro.
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1 | Agora tu, Calíope, me ensinaO que contou ao Rei o ilustre Gama:Inspira imortal canto e voz divinaNeste peito mortal, que tanto te ama.Assim o claro inventor da Medicina,De quem Orfeu pariste, ó linda Dama,Nunca por Dafne, Clície ou Leucotoe,Te negue o amor devido, como soe.
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2 | Põe tu, Ninfa, em efeito meu desejo,Como merece a gente Lusitana;Que veja e saiba o mundo que do TejoO licor de Aganipe corre e mana.Deixa as flores de Pindo, que já vejoBanhar-me Apolo na água soberana;Senão direi que tens algum receio,Que se escureça o teu querido Orfeio.
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3 | Prontos estavam todos escutandoO que o sublime Gama contaria,Quando, depois de um pouco estar cuidando,Alevantando o rosto, assim dizia:Mandas-me, ó Rei, que conte declarandoDe minha gente a grão genealogia:Não me mandas contar estranha história,Mas mandas-me louvar dos meus a glória.
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4 | Que outrem possa louvar esforço alheio,Cousa é que se costuma e se deseja;Mas louvar os meus próprios, arreceioQue louvor tão suspeito mal me esteja;E para dizer tudo, temo e creio,Que qualquer longo tempo curto seja:Mas, pois o mandas, tudo se te deve,Irei contra o que devo, e serei breve.
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5 | Além disso, o que a tudo enfim me obriga,É não poder mentir no que disser,Porque de feitos tais, por mais que diga,Mais me há-de ficar inda por dizer.Mas, porque nisto a ordens leve e siga,Segundo o que desejas de saber,Primeiro tratarei da larga terra,Depois direi da sanguinosa guerra.
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6 | Entre a Zona que o Cancro senhoreia,Meta setentrional do Sol luzente,E aquela que por f ria se arreceiaTanto, como a do meio por ardente,Jaz a soberba Europa, a quem rodeia,Pela parte do Areturo, e do Ocidente,Com suas salsas ondas o Oceano,E pela Austral o mar Mediterrano.
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7 | Da parte donde o dia vem nascendo,Com Ásia se avizinha; mas o rioQue dos montes Rifeios vai correndo,Na alagoa Meotis, curvo o frio,As divide: e o mar que, fero e horrendo,Viu dos Gregos o irado senhorio,Onde agora de Tróia triunfanteNão vê mais que a memória o navegante.
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8 | Lá onde mais debaixo está do Pólo,Os montes Hiperbóreos aparecem,E aqueles onde sempre sopra Eolo,E co'o nome, dos sopros se enobrecem.Aqui tão pouca força tem de ApoloOs raios que no mundo resplandecem,Que a neve está contido pelos montes,Gelado o mar, geladas sempre as fontes.
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9 | Aqui dos Citas grande quantidadeVivem, que antigamente grande guerraTiveram, sobre a humana antiguidade,Co'os que tinham então a Egípcia terra;Mas quem tão fora estava da verdade,(Já que o juízo humano tanto erra)Para que do mais certo se informara,Ao campo Damasceno o perguntara.
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10 | Agora nestas partes se nomeiaA Lápia fria, a inculta Noruega,Escandinávia Ilha, que se arreiaDas vitórias que Itália não lhe nega.Aqui, enquanto as águas não refreiaO congelado inverno, se navegaUm braço do Sarmático OceanoPelo Brúsio, Suécio e frio Dano.
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11 | Entre este mar e o Tánais vive estranhaGente: Rutenos, Moseos e Livónios,Sármatas outro tempo; e na montanhaHircínia os Marcomanos são Polónios.Sujeitos ao Império de AlemanhaSão Saxones, Boêmios e Panónios,E outras várias nações, que o Reno frioLava, e o Danúbio, Amasis e Albis rio.
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12 | Entre o remoto Istro e o claro Estreito,Aonde Hele deixou co'o nome a vida,Estão os Traces de robusto peito,Do fero Marte pátria tão querida,Onde, colo Hemo, o Ródope sujeitoAo Otomano está, que submetidaBizâncio tem a seu serviço indino:Boa injúria do grande Constantino!
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13 | Logo de Macedónia estão as gentes,A quem lava do Axio a água fria;E vós também, ó terras excelentesNos costumes, engenhos e ousadia,Que criastes os peitos eloquentesE os juízos de alta fantasia,Com quem tu, clara Grécia, o Céu penetras,E não menos por armas, que por letras.
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14 | Logo os Dálmatas vivem; e no seio,Onde Antenor já muros levantou,A soberba Veneza está no meioDas águas, que tão baixa começou.Da terra um braço vem ao mar, que cheioDe esforço, nações várias sujeitou,Braço forte, de gente sublimada,Não menos nos engenhos, que na espada.
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15 | Em torno o cerca o Reino Neptunino,Co'os muros naturais por outra parte;Pelo meio o divide o Apenino,Que tão ilustre fez o pátrio Marte;Mas depois que o Porteiro tem divino,Perdendo o esforço veio, e bélica arte;Pobre está já de antiga potestade:Tanto Deus se contenta de humildade!
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16 | Gália ali se verá que nomeadaCo'os Cesáreos triunfos foi no mundo,Que do Séquana e Ródano é regada,E do Giruna frio e Reno fundo.Logo os montes da Ninfa sepultadaPirene se alevantam, que segundoAntiguidades contam, quando arderam,Rios de ouro e de prata então correram.
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17 | Eis aqui se descobre a nobre Espanha,Como cabeça ali de Europa toda,Em cujo senhorio o glória estranhaMuitas voltas tem dado a fatal roda;Mas nunca poderá, com força ou manha,A fortuna inquieta pôr-lhe noda,Que lhe não tire o esforço e ousadiaDos belicosos peitos que em si cria.
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18 | Com Tingitânia entesta, e ali pareceQue quer fechar o mar Mediterrano,Onde o sabido Estreito se enobreceCo'o extremo trabalhado Tebano.Com nações diferentes se engrandece,Cercadas com as ondas do Oceano;Todas de tal nobreza e tal valor,Que qualquer delas cuida que é melhor.
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19 | Tem o Tarragonês, que se fez claroSujeitando Parténope inquieta;O Navarro, as Astúrias, que reparoJá foram contra a gente Mahometa;Tem o Galego cauto, e o grande e raroCastelhano, a quem fez o seu PlanetaRestituidor de Espanha e senhor dela,Bétis, Lião, Granada, com Castela.
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20 | Eis aqui, quase cume da cabeçaDe Europa toda, o Reino Lusitano,Onde a terra se acaba e o mar começa,E onde Febo repousa no Oceano.Este quis o Céu justo que floresçaNas armas contra o torpe Mauritano,Deitando-o de si fora, e lá na ardenteÁfrica estar quieto o não consente.
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22 | Esta é a ditosa pátria minha amada,A qual se o Céu me dá que eu sem perigoTorne, com esta empresa já acabada,Acabe-se esta luz ali comigo.Esta foi Lusitânia, derivadaDe Luso, ou Lisa, que de Baco antigoFilhos foram, parece, ou companheiros,E nela então os Íncolas primeiros.
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22 | Desta o pastor nasceu, que no seu nomeSe vê que de homem forte os feitos teve;Cuja fama ninguém virá que dome,Pois a grande de Roma não se atreve.Esta, o velho que os filhos próprios comePor decreto do Céu, ligeiro e leve,Veio a fazer no mundo tanta parte,Criando-a Reino ilustre; e foi desta arte:
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23 | Um Rei, por nome Afonso, foi na Espanha,Que fez aos Sarracenos tanta guerra,Que por armas sanguinas, força e manha,A muitos fez perder a vida o a terra;Voando deste Rei a fama estranhaDo Herculano Calpe à Cáspia serra,Muitos, para na guerra esclarecer-se,Vinham a ele e à morte oferecer-se.
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24 | E com um amor intrínseco acendidosDa Fé, mais que das honras populares,Eram de várias terras conduzidos,Deixando a pátria amada e próprios lares.Depois que em feitos altos e subidosSe mostraram nas armas singulares,Quis o famoso Afonso que obras taisLevassem prémio digno e dons iguais.
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25 | Destes Anrique, dizem que segundoFilho de um Rei de Ungria exprimentado,Portugal houve em sorte, que no mundoEntão não era ilustre nem prezado;E, para mais sinal d'amor profundo,Quis o Rei Castelhano, que casadoCom Teresa, sua filha, o Conde fosse;E com ela das terras tornou posse.
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26 | Este, depois que contra os descendentesDa escrava Agar vitórias grandes teve,Ganhando muitas terras adjacentes,Fazendo o que a seu forte peito deve,Em prémio destes feitos excelentes,Deu-lhe o supremo Deus, em tempo breve,Um filho, que ilustrasse o nome ufanoDo belicoso Reino Lusitano.
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27 | Já tinha vindo Anrique da conquistaDa cidade Hierosólima sagrada,E do Jordão a areia tinha vista,Que viu de Deus a carne em si lavada;Que não tendo Gotfredo a quem resista,Depois de ter Judeia sojugada,Muitos, que nestas guerras o ajudaram,Para seus senhorios se tornaram;
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28 | Quando chegado ao fim de sua idade,O forte e famoso Úngaro estremado,Forçado da fatal necessidade,O espírito deu a quem lhe tinha dado,Ficava o filho em tenra mocidade,Em quem o pai deixava seu traslado,Que do mundo os mais fortes igualava;Que de tal pai tal filho se esperava.
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29 | Mas o velho rumor, não sei se errado,Que em tanta antiguidade não há certeza,Conta que a mãe, tomando todo o estado,Do segundo himeneu não se despreza.O filho órfão deixava deserdado,Dizendo que nas terras a grandezaDo senhorio todo só sua era,Porque, para casar, seu pai lhes dera.
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30 | Mas o Príncipe Afonso, que desta arteSe chamava, do avô tomando o nome,Vendo-se em suas terras não ter parte,Que a mãe, com seu marido, as manda e come,Fervendo-lhe no peito o duro Marte,Imagina consigo como as tome.Revolvidas as causas no conceito,Ao propósito firme segue o efeito.
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31 | De Guimarães o campo se tingiaCo'o sangue próprio da intestina guerra,Onde a mãe, que tão pouco o parecia,A seu filho negava o amor e a terra.Com ele posta em campo já se via;E não vê a soberba o muito que erraContra Deus, contra o maternal amor;Mas nela o sensual era maior.
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32 | Ó Progne crua! ó mágica Medeia!Se em vossos próprios filhos vos vingaisDa maldade dos pais, da culpa alheia,Olhai que inda Teresa peca mais:Incontinência má, cobiça feia,São as causas deste erro principais:Cila, por uma, mata o velho pai,Esta, por ambas, contra o filho vai.
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33 | Mas já o Príncipe claro o vencimentoDo padrasto e da iníqua mãe levava;Já lhe obedece a terra num momento,Que primeiro contra ele pelejava.Porém, vencido de ira o entendimento,A mãe em ferros ásperos atava;Mas de Deus foi vingada em tempo breve:Tanta veneração aos pais se deve!
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34 | Eis se ajunta o soberbo Castelhano,Para vingar a injúria de Teresa,Contra o tão raro em gente Lusitano,A quem nenhum trabalho agrava ou pesa.Em batalha cruel o peito humano,Ajudado da angélica defesa,Não só contra tal fúria se sustenta,Mas o inimigo aspérrimo afugenta.
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35 | Não passa muito tempo, quando o fortePríncipe em Guimarães está cercadoDe infinito poder; que desta sorteFoi refazer-se o inimigo magoado;Mas, com se oferecer à dura morteO fiel Egas amo, foi livrado;Que de outra arte pudera ser perdido,Segundo estava mal apercebido.
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36 | lulas o leal vassalo, conhecendoQue seu senhor não tinha resistência,Se vai ao Castelhano, prometendoQue ele faria dar-lhe obediência.Levanta o inimigo o cerco horrendo,Fiado na promessa e consciênciaDe Egas Moniz; mas não consente o peitoDo moço ilustre a outrem ser sujeito.
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37 | Chegado tinha o prazo prometido,Em que o Rei Castelhano já aguardavaQue o Príncipe, a seu mando sometido,Lhe desse a obediência que esperava.Vendo Egas que ficava fementido,O que dele Castela não cuidava,Determina de dar a doce vidaA troco da palavra mal cumprida.
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38 | E com seus filhos e mulher se parteA alevantar com eles a fiança,Descalços e despidos, de tal arte,Que mais move a piedade que a vingança.Se pretendes, Rei alto, de vingar-teDe minha temerária confiança,Dizia, eis aqui venho oferecidoA te pagar, coa vida, o prometido.
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39 | Vês aqui trago as vidas inocentesDos filhos sem pecado e da consorte;Se a peitos generosos e excelentes,Dos fracos satisfaz a fera morte.Vês aqui as mãos e a língua delinquentes:Nelas sós exprimenta toda a sorteDe tormentos, de mortes, pelo estiloDe Cínis e do touro de Perilo! -
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40 | Qual diante do algoz o condenado,Que já na vida a morte tem bebido,Põe no cepo a garganta, e já entregadoEspera pelo golpe tão temido:Tal diante do Príncipe indinado,Egas estava a tudo oferecido.Mas o Rei, vendo a estranha lealdade,Mais pôde, enfim, que a ira a piedade.
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41 | Ó grão fidelidade Portuguesa,De vassalo, que a tanto se obrigava!Que mais o Persa fez naquela empresa,Onde rosto e narizes se cortava?Do que ao grande Dario tanto pesa,Que mil vezes dizendo suspirava,Que mais o seu Zopiro são prezara,Que vinte Babilónias que tomara.
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42 | Mas já o Príncipe Afonso aparelhavaO Lusitano exército ditoso,Contra o Mouro que as terras habitavaD'além do claro Tejo deleitoso;Já no campo de Ourique se assentavaO arraial soberbo e belicoso,Defronte do inimigo Sarraceno,Posto que em força e gente tão pequeno.
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43 | Em nenhuma outra cousa confiado,Senão no sumo Deus, que o Céu regia,Que tão pouco era o povo batizado,Que para um só cem Mouros haveria.Julga qualquer juízo sossegadoPor mais temeridade que ousadia,Cometer um tamanho ajuntamento,Que para um cavaleiro houvesse cento.
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44 | Cinco Reis Mouros são os inimigos,Dos quais o principal Ismar se chama;Todos exprimentados nos perigosDa guerra, onde se alcança a ilustre fama.Seguem guerreiras damas seus amigos,Imitando a formosa e forte Dama,De quem tanto os Troianos se ajudaram,E as que o Termodonte já gostaram.
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45 | A matutina luz serena e fria,As estrelas do Pólo já apartava,Quando na Cruz o Filho de Maria,Amostrando-se a Afonso, o animava.Ele, adorando quem lhe aparecia,Na Fé todo inflamado assim gritava:Aos infiéis, Senhor, aos infiéis,E não a mim, que creio o que podeis!
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46 | Com tal milagre os ânimos da gentePortuguesa inflamados, levantavamPor seu Rei natural este excelentePríncipe, que do peito tanto amavam;E diante do exército potenteDos imigos, gritando o céu tocavam,Dizendo em alta voz: Real, real,Por Afonso alto Rei de Portugal.
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47 | Qual co'os gritos e vozes incitado,Pela montanha o rábido Moloso,Contra o touro remete, que fiadoNa força está do corno temeroso:Ora pega na orelha, ora no lado,Latindo mais ligeiro que forçoso,Até que enfim, rompendo-lhe a garganta,Do bravo a força horrenda se quebranta:
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48 | Tal do Rei novo o estâmago acendidoPor Deus e pelo povo juntamente,O Bárbaro comete apercebido,Co'o animoso exército rompente.Levantam nisto os perros o alaridoDos gritos, tocam a arma, ferve a gente,As lanças e arcos tomam, tubas soam,Instrumentos de guerra tudo atroam.
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49 | Bem como quando a flama, que ateadaFoi nos áridos campos (assoprandoO sibilante Bóreas) animadaCo'o vento, o seco mato vai queimando;A pastoral companha, que deitadaCo'o doce sono estava, despertandoAo estridor do fogo que se ateia,Recolhe o fato, e foge para a aldeia:
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50 | Desta arte o Mouro atónito e torvado,Toma sem tento as armas mui depressa;Não foge; mas espera confiado,E o ginete belígero arremessa.O Português o encontra denodado,Pelos peitos as lanças lhe atravessa:Uns caem meios mortos, e outros vãoA ajuda convocando do Alcorão.
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51 | Ali se vêem encontros temerosos,Para se desfazer uma alta serra,E os animais correndo furiososQue Neptuno amostrou ferindo a terra.Golpes se dão medonhos e forçosos;Por toda a parte andava acesa a guerra:Mas o de Luso arnês, couraça e malhaRompe, corta, desfaz, abola e talha.
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52 | Cabeças pelo campo vão saltandoBraços, pernas, sem dono e sem sentido;E doutros as entranhas palpitando,Pálida a cor, o gesto amortecido.Já perde o campo o exército nefando;Correm rios de sangue desparzido,Com que também do campo a cor se perde,Tornado carmesi de branco e verde.
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53 | Já fica vencedor o Lusitano,Recolhendo os troféus e presa rica;Desbaratado e roto o Mauro Hispano,Três dias o grão Rei no campo fiei.Aqui pinta no branco escudo ufano,Que agora esta vitória certifica,Cinco escudos azuis esclarecidos,Em sinal destes cinco Reis vencidos,
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54 | E nestes cinco escudos pinta os trintaDinheiros por que Deus fora vendido,Escrevendo a memória em vária tinta,Daquele de quem foi favorecido.Em cada uni dos cinco, cinco pinta,Porque assim fica o número cumprido,Contando duas vezes o do meio,Dos cinco azuis, que em cruz pintando veio.
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55 | Passado já algum tempo que passadaEra esta grão vitória, o Rei subidoA tomar vai Leiria, que tomadaFora, mui pouco havia, do vencido.Com esta a forte Arronches sojugadaFoi juntamente, e o sempre enobrecidoScalabicastro, cujo campo ameno,Tu, claro Tejo, regas tão sereno.
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56 | A estas nobres vilas sometidas,Ajunta também Mafra, em pouco espaço,E nas serras da Lua conhecidas,Sojuga a fria Sintra o duro braço;Sintra, onde as Naiades, escondidasNas fontes, vão fugindo ao doce laço,Onde Amor as enreda brandamente,Nas águas acendendo fogo ardente.
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57 | E tu, nobre Lisboa, que no MundoFacilmente das outras és princesa,Que edificada foste do facundo,Por cujo engano foi Dardânia acesa;Tu, a quem obedece o mar profundo,Obedeceste à força Portuguesa,Ajudada também da forte armada,Que das Boreais partes foi mandada.
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58 | Lá do Germânico Albis, e do Rene,E da fria Bretanha conduzidos,A destruir o povo Sarraceno,Muitos com tensão santa eram partidos.Entrando a boca já do Tejo ameno,Co'o arraial do grande Afonso unidos,Cuja alta fama então subia aos Céus,Foi posto cerco tos muros Ulisseus.
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59 | Cinco vezes a Lua se escondera,E outras tantas mostrara cheio o rosto,Quando a cidade entrada se renderaAo duro cerco, que lhe estava posto.Foi a batalha tão sanguina e fera,Quanto obrigava o firme pressupostoDe vencedores ásperos e ousados,E de vencidos já desesperados.
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60 | Desta arte enfim tomada se rendeuAquela que, nos tempos já passados,A grande força nunca obedeceuDos frios povos Cíticos ousados,Cujo poder a tanto se estendeuQue o Ibero o viu e o Tejo amedrontados;E enfim co'o Bétis tanto alguns puderamQue à terra de Vandália nome deram.
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61 | Que cidade tão forte por venturaHaverá que resista, se LisboaNão pôde resistir à força duraDa gente, cuja fama tanto voa?Já lhe obedece toda a Estremadura,Óbidos, Alenquer, por onde soaO tom das frescas águas, entre as pedras,Que murmurando lava, e Torres Vedras.
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62 | E vós também, ó terras Transtaganas,Afamadas co'o dom da flava Ceres,Obedeceis às forças mais que humanas,Entregando-lhe os muros e os poderes.E tu, lavrador Mouro, que te enganas,Se sustentar a fértil terra queres;Que Elvas, e Moura, e Serpa conhecidas,E Alcácere-do-Sal estão rendidas.
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63 | Eis a nobre Cidade, certo assentoDo rebelde Sertório antigamente,Onde ora as águas nítidas de argentoVem sustentar de longo a terra e a gente,Pelos arcos reais, que cento e centoNos ares se alevantam nobremente,Obedeceu por meio e ousadiaDe Giraldo, que medos não temia.
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64 | Já na cidade Beja vai tomarVingança de Trancoso destruídaAfonso, que não sabe sossegar,Por estender coa fama a curta vida.Não se lhe pode muito sustentarA cidade; mas sendo já rendida,Em toda a cousa viva a gente iradaProvando os fios vai da dura espada.
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65 | Com estas sojugada foi Palmela,E a piscosa Cezimbra, e juntamente,Sendo ajudado mais de sua estrela,Desbarata um exército potente:Sentiu-o a vila, e viu-o a serra dela,Que a socorrê-la vinha diligentePela fralda da serra, descuidadoDo temeroso encontro inopinado.
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66 | O Rei de Badajoz era alto Mouro,Com quatro mil cavalos furiosos,Inúmeros peões, d'armas e de ouroGuarnecidos, guerreiros e lustrosos.Mas, qual no mês de Maio o bravo touro,Co'os ciúmes da vaca, arreceosos,Sentindo gente o bruto e cego amanteSalteia o descuidado caminhante:
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67 | Desta arte Afonso súbito mostradoNa gente dá, que passa bem segura,Fere, mata, derriba denodado;Foge o Rei Mouro, e só da vida cura.Dum pânico terror todo assombrado,Só de segui-lo o exército procura;Sendo estes que fizeram tanto abaloNão mais que só sessenta de cavalo.
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68 | Logo segue a vitória sem tardançaO grão Rei incansábil, ajuntandoGentes de todo o Reino, cuja usançaEra andar sempre terras conquistando.Cercar vai Badajoz, e logo alcançaO fim de seu desejo, pelejandoCom tanto esforço, e arte, e valentia,Que a fez fazer às outras companhia.
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69 | Mas o alto Deus, que para longe guardaO castigo daquele que o merece,Ou, para que se emende, às vezes tarda,Ou por segredos que homem não conhece,Se até que sempre o forte Rei resguardaDos perigos a que ele se oferece;Agora lhe não deixa ter defesaDa maldição da mãe que estava presa.
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70 | Que estando na cidade, que cercara,Cercado nela foi dos Lioneses,Porque a conquista dela lhe tomara,De Lião sendo, e não dos Portugueses.A pertinácia aqui lhe custa cara,Assim como acontece muitas vezes,Que em ferros quebra as pernas, indo acesoA batalha, onde foi vencido e preso.
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71 | Ó famoso Pompeio, não te peneDe teus feitos ilustres a ruína,Nem ver que a justa Némesis ordeneTer teu sogro de ti vitória dina,Posto que o frio Fásis, ou Siene,Que para nenhum cabo a sombra inclina,O Bootes gelado e a linha ardente,Temessem o teu nome geralmente.
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72 | Posto que a rica Arábia e que os ferozesEníocos e Colcos, cuja famaO Véu dourado estende, e os Capadoces,E Judeia, que um Deus adora e ama,E que os moles Sofenos, e os atrocesCilícios, com a Arménia, que derramaAs águas dos dous rios, cuja fonteEstá noutro mais alto e santo monte;
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73 | E posto enfim que desde o mar de AtlanteAté o Cítico Tauro monte erguido,Já vencedor te vissem, não te espantoSe o campo Emátio só te viu vencido,Porque Afonso verás, soberbo e ovante,Tudo render-se ser depois rendido.Assim o quis o conselho alto e celeste,Que vença o sogro a ti, e o genro a este.
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74 | Tornado o Rei sublime finalmente,Do divino Juízo castigado,Depois que em Santarém soberbamenteEm vão dos Sarracenos foi cercado,E depois que do mártire VicenteO santíssimo corpo veneradoDo Sacro Promontório conhecidoA cidade Ulisseia foi trazido;
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75 | Porque levasse avante seu desejo,Ao forte filho manda o lasso velhoQue às terras se passasse d'Alentejo,Com gente e co'o belígero aparelho.Sancho, d'esforço o d'ânimo sobejo,Avante passa, e faz correr vermelhoO rio que Sevilha vai regando,Co'o sangue Mauro, bárbaro e nefando.
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76 | E com esta vitória cobiçoso,Já não descansa o moço até que vejaOutro estrago como este, temeroso,No Bárbaro que tem cercado Beja.Não tarda muito o Príncipe ditosoSem ver o fim daquilo que deseja.Assim estragado o Mouro, na vingançaDe tantas perdas põe sua esperança.
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77 | Já se ajuntam do monte a quem MedusaO corpo fez perder, que teve o Céu;Já vem do promontório de AmpelusaE do Tinge, que assento foi de Anteu.O morador de Abila não se escusa,Que também com suas armas se moveu,Ao som da Mauritana e ronca tuba,Todo o Reino que foi do nobre Juba.
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78 | Entrava com toda esta companhiaO Miralmomini em Portugal;Treze Reis mouros leva de valia,Entre os quais tem o ceptro imperial;E assim fazendo quanto mal podia,O que em partes podia fazer mal,Dom Sancho vai cercar em Santarém;Porém não lhe sucede muito bem.
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79 | Dá-lhe combates ásperos, fazendoArdis de guerra mil o Mouro iroso;Não lhe aproveita já trabuco horrendo,Mina secreta, aríete forçoso:Porque o filho de Afonso não perdendoNada do esforço e acordo generoso,Tudo provê com ânimo e prudência;Que em toda a parte há esforço e resistência.
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80 | Mas o velho, a quem tinham já obrigadoOs trabalhosos anos ao sossego,Estando na cidade, cujo pradoEnverdecem as águas do Mondego,Sabendo como o filho está cercadoEm Santarém do Mauro povo cego,Se parte diligente da cidade;Que não perde a presteza coa idade.
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81 | E coa famosa gente à guerra usadaVai socorrer o filho; e assim ajuntados,A Portuguesa fúria costumadaEm breve os Mouros tem desbaratados.A campina, que toda está coalhadaDe marlotas, capuzes variados,De cavalos, jaezes, presa rica,De seus senhores mortos cheia fica.
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82 | Logo todo o restante se partiuDe Lusitânia, postos em fugida;O Miralmomini só não fugiu,Porque, antes de fugir, lhe foge a vida.A quem lhe esta vitória permitiuDão louvores e graças sem medida:Que em casos tão estranhos claramenteMais peleja o favor de Deus que a gente.
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83 | De tamanhas vitórias triunfavaO velho Afonso , Príncipe subido,Quando, quem tudo enfim vencendo andava,Da larga e muita idade foi vencido.A pálida doença lhe tocavaCom fria mão o corpo enfraquecido;E pagaram seus anos deste jeitoA triste Libitina seu direito.
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84 | Os altos promontórios o choraram,E dos rios as águas saudosasOs semeados campos alagaramCom lágrimas correndo piedosas.Mas tanto pelo mundo se alargaramCom faina suas obras valerosas,Que sempre no seu Reino chamarãoAfonso, Afonso os ecos, mas em vão.
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85 | Sancho, forte mancebo, que ficaraImitando seu pai na valentia,E que em sua vida já se exprimentara,Quando o Bétis de sangue se tingia,E o bárbaro poder desbarataraDo Ismaelita Rei de Andaluzia;E mais quando os que Beja em vão cercaram,Os golpes de seu braço em si provaram;
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86 | Depois que foi por Rei alevantado,Havendo poucos anos que reinava,A cidade de Silves tem cercado,Cujos campos o bárbaro lavrava.Foi das valentes gentes ajudadoDa Germânica armada que passava,De armas fortes e gente apercebida,A recobrar Judeia já perdida.
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87 | Passavam a ajudar na santa empresaO roxo Federico, que moveuO poderoso exército em defesaDa cidade onde Cristo padeceu,Quando Guido, coa gente em sede acesa,Ao grande Saladino se rendeu,No lugar onde aos Mouros sobejavamAs águas que os de Guido desejavam.
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88 | Mas a formosa armada, que vieraPor contraste de vento àquela parte,Sancho quis ajudar na guerra fera,Já que em serviço vai do santo Marte.Assim como a seu pai aconteceraQuando tomou Lisboa, da mesma arteDo Germano ajudado Silves toma,E o bravo morador destrue e doma.
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89 | E se tantos troféus do MahometaAlevantando vai, também do forteLionês não consente estar quietaA terra, usada aos casos de Mavorte,Até que na cerviz seu jugo metaDa soberba Tui, que a mesma sorteViu ter a muitas vilas suas vizinhas,Que, por armas, tu, Sancho, humildes tinhas.
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90 | Mas entre tantas palmas salteadoDa temerosa morte, fica herdeiroUm filho seu, de todos estimado,Que foi segundo Afonso, e Rei terceiro.No tempo deste, aos Mouros foi tomadoAlcácere-do-Sal por derradeiro;Porque dantes os Mouros o tomaram,Mas agora estruídos o pagaram.
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91 | Morto depois Afonso, lhe sucedeSancho segundo, manso e descuidado,Que tanto em seus descuidos se desmede,Que de outrem, quem mandava, era mandado.De governar o Reino, que outro pede,Por causa dos privados foi privado,Porque, como por eles se regia,Em todos os seus vícios consentia.
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92 | Não era Sancho, não, tão desonestoComo Nero, que um moço recebiaPor mulher, e depois horrendo incestoCom a mãe Agripina cometia;Nem tão cruel às gentes e molesto,Que a cidade queimasse onde vivia,Nem tão mau como foi Heliogabalo,Nem como o mole Rei Sardanapalo.
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93 | Nem era o povo seu tiranizado,Como Sicília foi de seus tiranos;Nem tinha como Fálaris achadoGênero de tormentos inumanos;Mas o Reino, de altivo e costumadoA senhores em tudo soberanos,A Rei não obedece, nem consente,Que não for mais que todos excelente.
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94 | Por esta causa o Reino governouO Conde Bolonhês, depois alçadoPor Rei, quando da vida se apartouSeu irmão Sancho, sempre ao ócio dado.Este, que Afonso o bravo, se chamou,Depois de ter o Reino segurado,Em dilatá-lo cuida, que em terrenoNão cabe o altivo peito, tão pequeno.
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95 | Da terra dos Algarves, que lhe foraEm casamento dada, grande parteRecupera co'o braço, e deita foraO Mouro, mal querido já de Marte.Este de todo fez livre e senhoraLusitânia, com força e bélica arte;E acabou de oprimir a nação forte,Na terra que aos de Luso coube em sorte.
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96 | Eis depois vem Dinis, que bem pareceDo bravo Afonso estirpe nobre e dina,Com quem a fama grande se escureceDa liberalidade Alexandrina.Com este o Reino próspero florece(Alcançada já a paz áurea divina)Em constituições, leis e costumes,Na terra já tranquila claros lumes.
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97 | Fez primeiro em Coimbra exercitar-seO valeroso ofício de Minerva;E de Helicona as Musas fez passar-seA pisar do Monde-o a fértil erva.Quanto pode de Atenas desejar-se,Tudo o soberbo Apolo aqui reserva.Aqui as capelas dá tecidas de ouro,Do bácaro e do sempre verde louro.
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98 | Nobres vilas de novo edificouFortalezas, castelos mui seguros,E quase o Reino todo reformouCom edifícios grandes, e altos muros.Mas depois que a dura Átropos cortouO fio de seus dias já maduros,Ficou-lhe o filho pouco obediente,Quarto Afonso, mas forte e excelente.
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99 | Este sempre as soberbas CastelhanasCo'o peito desprezou firme e sereno,Porque não é das forças Lusitanas,Temer poder maior, por mais pequeno.Mas porém, quando as gentes Mauritanas,A possuir o Hespérico terrenoEntraram pelas terras de Castela,Foi o soberbo Afonso a socorrê-la.
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100 | Nunca com Semirâmis gente tantaVeio os campos idáspicos enchendo,Nem Atila, que Itália toda espanta,Chamando-se de Deus açoute horrendo,Gótica gente trouxe tanta, quantaDo Sarraceno bárbaro estupendo,Co'o poder excessivo de Granada,Foi nos campos Tartésios ajuntada.
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101 | E vendo o Rei sublime CastelhanoA força inexpugnábil, grande e forte,Temendo mais o fim do povo hispano,Já perdido uma vez, que a própria morte,Pedindo ajuda ao forte Lusitano,Lhe mandava a caríssima consorte,Mulher de quem a manda, e filha amadaDaquele a cujo Reino foi mandada.
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102 | Entrava a formosíssima MariaPelos paternais paços sublimados,Lindo o gesto, mas fora de alegria,E seus olhos em lágrimas banhados;Os cabelos angélicos traziaPelos ebúrneos ombros espalhados:Diante do pai ledo, que a agasalha,Estas palavras tais, chorando, espalha:
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103 | Quantos povos a terra produziuDe África toda, gente fera e estranha,O grão Rei de Marrocos conduziuPara vir possuir a nobre Espanha:Poder tamanho junto não se viu,Depois que o salso mar a terra banha.Trazem ferocidade, e furor tanto,Que a vivos medo, e a mortos faz espanto.
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104 | Aquele que me deste por marido,Por defender sua terra amedrontada,Co'o pequeno poder, oferecidoAo duro golpe está da Maura espada;E se não for contigo socorrido,Ver-me-ás dele e do Reino ser privada,Viúva e triste, e posta em vida escura,Sem marido, sem Reino, e sem ventura.
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105 | Portanto, ó Rei, de quem com puro medoO corrente Muluca se congela,Rompe toda a tardança, acude cedoA miseranda gente de Castela.Se esse gesto, que mostras claro e ledo,De pai o verdadeiro amor assela,Acude e corre, pai, que se não corres,Pode ser que não aches quem socorres. -
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106 | Não de outra sorte a tímida MariaFalando está, que a triste Vénus, quandoA Júpiter, seu pai, favor pediaPara Eneias, seu filho, navegando;Que a tanta piedade o comoviaQue, caído das mãos o raio infando,Tudo o clemente Padre lhe concede,Pesando-lhe do pouco que lhe pede.
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107 | Mas já co'os esquadrões da gente armadaOs Eborenses campos vão coalhados:Lustra co'o Sol o arnês, a lança, a espada;Vão rinchando os cavalos jaezados.A canora trombeta embandeirada,Os corações à paz acostumadosVai às fulgentes armas incitando,Pelas concavidades retumbando.
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108 | Entre todos no meio se sublima,Das insígnias Reais acompanhado,O valeroso Afonso, que por cimaDe todos leva o colo alevantado;E somente co'o gesto esforça e animaA qualquer coração amedrontado.Assim entra nas terras de CastelaCom a filha gentil, Rainha dela.
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109 | Juntos os dous Afonsos finalmenteNos campos de Tarifa estão defronteDa grande multidão da cega gente,Para quem são pequenos campo e monte.Não há peito tão alto e tão potente,Que de desconfiança não se afronte,Enquanto não conheça e claro vejaQue co'o braço dos seus Cristo peleja.
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110 | Estão de Agar os netos quase rindoDo poder dos Cristãos fraco e pequeno,As terras como suas repartindoAntemão, entre o exército Agareno,Que com título falso possuindoEstá o famoso nome Sarraceno.Assim também com falsa conta e nua,À nobre terra alheia chamam sua.
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111 | Qual o membrudo e bárbaro Gigante,Do rei Saul, com causa, tão temido,Vendo o pastor inerme estar diante,Só de pedras e esforço apercebido,Com palavras soberbas o arroganteDespreza o fraco moço mal vestido,Que, rodeando a funda, o desenganaQuanto mais pode a Fé que a força humana:
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112 | Desta arte o Mouro pérfido desprezaO poder dos Cristãos, e não entendeQue está ajudado da Alta Fortaleza,A quem o inferno horrífico se rende.Co ela o Castelhano, e com destrezaDe Marrocos o Rei comete e ofende.O Português, que tudo estima em nada,Se faz temer ao Reino de Granada.
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113 | Eis as lanças e espadas retiniamPor cima dos arneses: bravo estrago!Chamam (segundo as leis que ali seguiam)Uns Mafamede, e os outros Santiago.Os feridos com grita o Céu feriam,Fazendo de seu sangue bruto lago,Onde outros meios mortos se afogavam,Quando do ferro as vidas escapavam.
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114 | Com esforço tamanho estrui e mataO Luso ao Granadil, que, em pouco espaço,Totalmente o poder lhe desbarata,Sem lhe valer defesa ou peito de aço.De alcançar tal vitória tão barataInda não bem contente o forte braço,Vai ajudar ao bravo Castelhano,Que pelejando está co'o Mauritano.
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115 | Já se ia o Sol ardente recolhendoPara a casa de Tethys, e inclinadoPara o Ponente, o Véspero trazendo,Estava o claro dia memorado,Quando o poder do Mauro grande e horrendoFoi pelos fortes Reis desbaratado,Com tanta mortandade, que a memóriaNunca no mundo viu tão grã vitória.
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116 | Não matou a quarta parte o forte MárioDos que morreram neste vencimento,Quando as águas co'o sangue do adversárioFez beber ao exército sedento;Nem o Peno asperíssimo contrárioDo Romano poder, de nascimento,Quando tantos matou da ilustro Roma,Que alqueires três de anéis dos mortos toma.
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117 | E se tu tantas almas só pudesteMandar ao Reino escuro de Cocito,Quando a santa Cidade desfizesteDo povo pertinaz no antigo rito:Permissão e vingança foi celeste,E não força de braço, ó nobre Tito,Que assim dos Vates foi profetizado,E depois por Jesu certificado.
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118 | Passada esta tão próspera vitória,Tornando Afonso à Lusitana terra,A se lograr da paz com tanta glóriaQuanta soube ganhar na dura guerra,O caso triste, e dino da memória,Que do sepulcro os homens desenterra,Aconteceu da mísera e mesquinhaQue depois de ser morta foi Rainha.
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119 | Tu só, tu, puro Amor, com força crua,Que os corações humanos tanto obriga,Deste causa à molesta morte sua,Como se fora pérfida inimiga.Se dizem, fero Amor, que a sede tuaNem com lágrimas tristes se mitiga,É porque queres, áspero e tirano,Tuas aras banhar em sangue humano.
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120 | Estavas, linda Inês, posta em sossego,De teus anos colhendo doce fruto,Naquele engano da alma, ledo e cego,Que a fortuna não deixa durar muito,Nos saudosos campos do Mondego,De teus fermosos olhos nunca enxuto,Aos montes ensinando e às ervinhasO nome que no peito escrito tinhas.
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121 | Do teu Príncipe ali te respondiamAs lembranças que na alma lhe moravam,Que sempre ante seus olhos te traziam,Quando dos teus fermosos se apartavam:De noite em doces sonhos, que mentiam,De dia em pensamentos, que voavam.E quanto enfim cuidava, e quanto via,Eram tudo memórias de alegria.
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122 | De outras belas senhoras e PrincesasOs desejados tálamos enjeita,Que tudo enfim, tu, puro amor, despreza,Quando um gesto suave te sujeita.Vendo estas namoradas estranhezasO velho pai sesudo, que respeitaO murmurar do povo, e a fantasiaDo filho, que casar-se não queria,
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123 | Tirar Inês ao mundo determina,Por lhe tirar o filho que tem preso,Crendo co'o sangue só da morte indinaMatar do firme amor o fogo aceso.Que furor consentiu que a espada fina,Que pôde sustentar o grande pesoDo furor Mauro, fosse alevantadaContra uma fraca dama delicada?
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124 | Traziam-na os horríficos algozesAnte o Rei, já movido a piedade:Mas o povo, com falsas e ferozesRazões, à morte crua o persuade.Ela com tristes o piedosas vozes,Saídas só da mágoa, e saudadeDo seu Príncipe, e filhos que deixava,Que mais que a própria morte a magoava,
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125 | Para o Céu cristalino alevantandoCom lágrimas os olhos piedosos,Os olhos, porque as mãos lhe estava atandoUm dos duros ministros rigorosos;E depois nos meninos atentando,Que tão queridos tinha, e tão mimosos,Cuja orfandade como mãe temia,Para o avô cruel assim dizia:
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126 | Se já nas brutas feras, cuja menteNatura fez cruel de nascimento,E nas aves agrestes, que somenteNas rapinas aéreas têm o intento,Com pequenas crianças viu a genteTerem tão piedoso sentimento,Como coa mãe de Nino já mostraram,E colos irmãos que Roma edificaram;
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127 | Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito(Se de humano é matar uma donzelaFraca e sem força, só por ter sujeitoO coração a quem soube vencê-la)A estas criancinhas tem respeito,Pois o não tens à morte escura dela;Mova-te a piedade sua e minha,Pois te não move a culpa que não tinha.
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128 | E se, vencendo a Maura resistência,A morte sabes dar com fogo e ferro,Sabe também dar vicia com clemênciaA quem para perdê-la não fez erro.Mas se to assim merece esta inocência,Põe-me em perpétuo e mísero desterro,Na Cítia f ria, ou lá na Líbia ardente,Onde em lágrimas viva eternamente.
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129 | Põe-me onde se use toda a feridade,Entre leões e tigres, e vereiSe neles achar posso a piedadeQue entre peitos humanos não achei:Ali com o amor intrínseco e vontadeNaquele por quem morro, criareiEstas relíquias suas que aqui viste,Que refrigério sejam da mãe triste. -
[ Morte de Inês de Castro ]
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130 |
Queria perdoar-lhe o Rei benino,Movido das palavras que o magoam;Mas o pertinaz povo, e seu destino(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam.Arrancam das espadas de aço finoOs que por bom tal feito ali apregoam.Contra uma dama, ó peitos carniceiros,Feros vos amostrais, e cavaleiros?
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131 | Qual contra a linda moça Policena,Consolação extrema da mãe velha,Porque a sombra de Aquiles a condena,Co'o ferro o duro Pirro se aparelha;Mas ela os olhos com que o ar serena(Bem como paciente e mansa ovelha)Na mísera mãe postos, que endoudece,Ao duro sacrifício se oferece:
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132 | Tais contra Inês os brutos matadoresNo colo de alabastro, que sustinhaAs obras com que Amor matou de amoresAquele que depois a fez Rainha;As espadas banhando, e as brancas flores,Que ela dos olhos seus regadas tinha,Se encarniçavam, férvidos e irosos,No futuro castigo não cuidosos.
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133 | Bem puderas, ó Sol, da vista destesTeus raios apartar aquele dia,Como da seva mesa de Tiestes,Quando os filhos por mão de Atreu comia.Vós, ó côncavos vales, que pudestesA voz extrema ouvir da boca fria,O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes,Por muito grande espaço repetisses!
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134 | Assim como a bonina, que cortadaAntes do tempo foi, cândida e bela,Sendo das mãos lascivas maltratadaDa menina que a trouxe na capela,O cheiro traz perdido e a cor murchada:Tal está morta a pálida donzela,Secas do rosto as rosas, e perdidaA branca e viva cor, coa doce vida.
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135 | As filhas do Mondego a morte escuraLongo tempo chorando memoraram,E, por memória eterna, em fonte puraAs lágrimas choradas transformaram;O nome lhe puseram, que inda dura,Dos amores de Inês que ali passaram.Vede que fresca fonte rega as flores,Que lágrimas são a água, e o nome amores.
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136 | Não correu muito tempo que a vingançaNão visse Pedro das mortais feridas,Que, em tomando do Reino a governança,A tomou dos fugidos homicidas.Do outro Pedro cruíssimo os alcança,Que ambos, imigos das humanas vidas,O concerto fizeram, duro e injusto,Que com Lépido e António fez Augusto.
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137 | Este, castigador foi rigorosoDe latrocínios, mortes e adultérios:Fazer nos maus cruezas, fero e iroso,Eram os seus mais certos refrigérios.As cidades guardando justiçosoDe todos os soberbos vitupérios,Mais ladrões castigando à morte deu,Que o vagabundo Aleides ou Teseu.
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138 | Do justo e duro Pedro nasce o brando,(Vede da natureza o desconcerto!)Remisso, e sem cuidado algum, Fernando,Que todo o Reino pôs em muito aperto:Que, vindo o Castelhano devastandoAs terras sem defesa, esteve pertoDe destruir-se o Reino totalmente;Que um fraco Rei f az fraca a forte gente.
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139 | Ou foi castigo claro do pecadoDe tirar Lianor a seu marido,E casar-se com ela, de enlevadoNum falso parecer mal entendido;Ou foi que o coração sujeito e dadoAo vício vil, de quem se viu rendido,Mole se fez e fraco; e bem parece,Que um baixo amor os fortes enfraquece.
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140 | Do pecado tiveram sempre a penaMuitos, que Deus o quis, e permitiu:Os que foram roubar a bela Helena,E com Apio também Tarquilio o viu.Pois por quem David Santo se condena?Ou quem o Tribo ilustre destruiuDe Benjamim?Bem claro no-lo ensinaPor Sara Faraó, Siquém por Dina.
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141 | E pois se os peitos fortes enfraqueceUm inconcesso amor desatinado,Bem no filho de Alcmena se parece,Quando em Ônfale andava transformado.De Marco António a faina se escureceCom ser tanto a Cleopatra afeiçoado.Tu também, Peno próspero, o sentisteDepois que uma moça vil na Apúlia viste.
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142 | Mas quem pode livrar-se por venturaDos laços que Amor arma brandamenteEntre as rosas e a neve humana pura,O ouro e o alabastro transparente?Quem de uma peregrina formosura,De um vulto de Medusa propriamente,Que o coração converte, que tem preso,Em pedra não, mas em desejo aceso?
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143 | Quem viu um olhar seguro, um gesto brando,Uma suave e angélica excelência,Que em si está sempre as almas transformando,Que tivesse contra ela resistência?Desculpado por certo está Fernando,Para quem tem de amor experiência;Mas antes, tendo livre a fantasia,Por muito mais culpado o julgaria.
FIM. |