Luís Vaz de Camões
1524/25 -1580
Os Lusíadas
Canto VI
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Canto sexto.
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1 | Não sabia em que modo festejasseO Rei Pagão os fortes navegantes,Para que as amizades alcançasseDo Rei Cristão, das gentes tão possantes;Pesa-lhe que tão longe o aposentasseDas Européias terras abundantesA ventura, que não no fez vizinhoDonde Hércules ao mar abriu caminho.
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2 | Com jogos, danças e outras alegrias,A segundo a polícia Melindana,Com usadas e ledas pescarias,Com que a Lageia António alegra e enganaEste famoso Rei, todos os dias,Festeja a companhia Lusitana,Com banquetes, manjares desusados,Com frutas, aves, carnes e pescados.
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3 | Mas vendo o Capitão que se detinhaJá mais do que devia, e o fresco ventoO convida que parta e tome asinhaOs pilotos da terra e mantimento,Não se quer mais deter, que ainda tinhaMuito para cortar do salso argento;Já do Pagão benigno se despede,Que a todos amizade longa pede.
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4 | Pede-lhe mais que aquele porto sejaSempre com suas frotas visitado,Que nenhum outro bem maior deseja,Que dar a tais barões seu reino e estado;E que enquanto seu corpo o espírito reja,Estará de contino aparelhadoA pôr a vida e reino totalmentePor tão bom Rei, por tão sublime gente.
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5 | Outras palavras tais lhe respondiaO Capitão, o logo as velas dando,Para as terras da Aurora se partia,Que tanto tempo há já que vai buscando.No piloto que leva não haviaFalsidade, mas antes vai mostrandoA navegação certa, e assim caminhaJá mais seguro do que dantes vinha.
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6 | As ondas navegavam do OrienteJá nos mares da Índia, e enxergavamOs tálamos do Sol, que nasce ardente;Já quase seus desejos se acabavam.Mas o mau de Tioneu, que na alma senteAs venturas, que então se aparelhavamA gente Lusitana, delas dina,Arde, morre, blasfema e desatina.
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7 | Via estar todo o Céu determinadoDe fazer de Lisboa nova Roma;Não no pode estorvar, que destinadoEstá doutro poder que tudo doma.Do Olimpo desce enfim desesperado;Novo remédio em terra busca e toma:Entra no úmido reino, e vai-se à corteDaquele a quem o mar caiu em sorte.
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8 | No mais interno fundo das profundasCavernas altas, onde o mar se esconde,Lá donde as ondas saem furibundas,Quando às iras do vento o mar responde,Netuno mora, e moram as jocundasNereidas, e outros Deuses do mar, ondeAs águas campo deixam às cidades,Que habitam estas úmidas deidades.
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9 | Descobre o fundo nunca descobertoDas areias ali de prata fina;Torres altas se vêem no campo abertoDa transparente massa cristalina:Quanto se chegam mais os olhos perto,Tanto menos a vista determinaSe é cristal o que vê, se diamante,Que assim se mostra claro e radiante.
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10 | As portas douro fino, e marchetadasDo rico aljôfar que nas conchas nasce,De escultura formosa estão lavradas,Na qual o irado Baco a vista pasce;E vê primeiro em cores variadasDo velho Caos a tão confusa face;Vêem-se os quatro elementos trasladadosEm diversos ofícios ocupados.
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11 | Ali sublime o Fogo estava em cima,Que em nenhuma matéria se sustinha;Daqui as coisas vivas sempre anima,Depois que Prometeu furtado o tinha.Logo após ele leve se sublimaO invisível Ar, que mais asinhaTomou lugar, e nem por quente ou f rio,Algum deixa no mundo estar vazio.
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12 | Estava a terra em montes revestidaDe verdes ervas, e árvores floridas,Dando pasto diverso e dando vidaAs alimárias nela produzidas.A clara forma ali estava esculpidaDas águas entre a terra desparzidas,De pescados criando vários modos,Com seu humor mantendo os corpos todos.
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13 | Noutra parte esculpida estava a guerra,Que tiveram os Deuses com os Gigantes;Está Tifeu debaixo da alta serraDe Etna, que as flamas lança crepitantes;Esculpido se vê ferindo a terraNetuno, quando as gentes ignorantesDele o cavalo houveram, e a primeiraDe Minerva pacífica oliveira.
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14 | Pouca tardança faz Lieu iradoNa vista destas coisas, mas entrandoNos paços de Netuno, que avisadoDa vinda sua, o estava já aguardando,As portas o recebe, acompanhadoDas Ninfas, que se estão maravilhandoDe ver que, cometendo tal caminho,Entre no reino d'água o Rei do vinho.
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15 | Ó Netuno, lhe disse, não te espantesDe Baco nos teus reinos receberes,Porque também com os grandes e possantesMostra a Fortuna injusta seus poderes.Manda chamar os Deuses do mar, antesQue fale mais, se ouvir-me o mais quiseres;Verão da desventura grandes modos:Ouçam todos o mal, que toca a todos.
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16 | Julgando já Netuno que seriaEstranho caso aquele, logo mandaTritão, que chame os Deuses da água fria,Que o mar habitam duma e doutra banda.Tritão, que de ser filho se gloriaDo Rei e de Salácia veneranda,Era mancebo grande, negro e feio,Trombeta de seu pai, e seu correio.
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17 | Os cabelos da barba, e os que descemDa cabeça nos ombros, todos eramUns limos prenhes d'água, e bem parecemQue nunca brando pentem conheceram;Nas pontas pendurados não falecemOs negros misilhões, que ali se geram,Na cabeça por gorra tinha postaUma muito grande casca de lagosta.
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18 | O corpo nu, e os membros genitais,Por não ter ao nadar impedimento,Mas porém de pequenos animaisDo mar todos cobertos cento e cento:Camarões e cangrejos, e outros maisQue recebem de Febe crescimento,Ostras, e camarões do musgo sujos,As costas com a casca os caramujos.
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19 | Na mão a grande concha retorcidaQue trazia, com força, já tocava;A voz grande canora foi ouvidaPor todo o mar, que longe retumbava.Já toda a companhia apercebidaDos Deuses para os paços caminhavaDo Deus, que fez os muros de Dardânia,Destruídos depois da Grega insânia.
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20 | Vinha o padre Oceano acompanhadoDos filhos e das filhas que gerara;Vem Nereu, que com Dóris foi casado,Que todo o mar de Ninfas povoara;O profeta Proteu, deixando o gadoMarítimo pascer pela água amara,Ali veio também, mas já sabiaO que o padre Lieu no mar queria.
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21 | Vinha por outra parte a linda esposaDe Netuno, de Celo e Vesta filha,Grave e Ieda no gesto, e tão formosaQue se amansava o mar de maravilha.Vestida uma camisa preciosaTrazia de delgada beatilha,Que o corpo cristalino deixa ver-se,Que tanto bem não é para esconder-se.
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22 | Anfitrite, formosa como as flores,Neste caso não quis que falecesse;O Delfim traz consigo, que aos amoresDo Rei lhe aconselhou que obedecesse.Com os olhos, que de tudo são senhores,Qualquer parecerá que o Sol vencesse:Ambas vêm pela mão, igual partido,Pois ambas são esposas dum marido.
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23 | Aquela que das fúrias de AtamanteFugindo, veio a ter divino estado,Consigo traz o filho, belo Infante,No número dos Deuses relatado.Pela praia brincando vem dianteCom as lindas conchinhas, que o salgadoMar sempre cria, e às vezes pela areiaNo colo o to a a bela Panopeia.
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24 | E o Deus que foi num tempo corpo humano,E por virtude da erva poderosaFoi convertido em peixe, e deste danoLhe resultou deidade gloriosa,Inda vinha chorando o feio enganoQue Circe tinha usado com a formosaCila, que ele ama, desta sendo amado,Que a mais obriga amor mal empregado.
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25 | Já finalmente todos assentadosNa grande sala, nobre e divinal;As Deusas em riquíssimos estrados,Os Deuses em cadeiras de cristal,Foram todos do Padre agasalhados,Que com o Tebano tinha assento igual.De fumos enche a casa a rica massaQue no mar nasce, e Arábia em cheiro passa.
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26 | Estando sossegado já o tumultoDos Deuses, e de seus recebimentos,Começa a descobrir do peito ocultoA causa o Tioneu de seus tormentos:Um pouco carregando-se no vulto,Dando mostra de grandes sentimentos,Só por dar aos de Luso triste morteCom o ferro alheio, fala desta sorte:
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27 | Príncipe, que de juro senhoreiasDum Pólo ao outro Pólo o mar irado,Tu, que as gentes da terra toda enfreias,Que não passem o termo limitado;E tu, padre Oceano, que rodeiasO inundo universal, e o tens cercado,E com justo decreto assim permitesQue dentro vivam só de seus limites;
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28 | E vós, Deuses do mar, que não sofreisInjúria alguma em vosso reino grande,Que com castigo igual vos não vingueisDe quem quer que por ele corra e ande:Que descuido foi este em que viveis?Quem pode ser que tanto vos abrandeOs peitos, com razão endurecidosContra os humanos fracos e atrevidos?
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29 | Vistes que com grandíssima ousadiaForam já cometer o Céu supremo;Vistes aquela insana fantasiaDe tentarem o mar com vela e reino;Vistes, e ainda vemos cada dia,Soberbas e insolências tais, que temoQue do mar e do Céu em poucos anosVenham Deuses a ser, e nós humanos.
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30 | Vedes agora a fraca geraçãoQue dum vassalo meu o nome toma,Com soberbo e altivo coração,A vós, e a mi, e o mundo todo doma;Vedes, o vosso mar cortando vão,Mais do que fez a gente alta de Roma;Vedes, o vosso reino devassando,Os vossos estatutos vão quebrando.
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31 | Eu vi que contra os Mínias, que primeiroNo vosso reino este caminho abriram,Bóreas injuriado, e o companheiroAquilo, e os outros todos resistiram.Pois se do ajuntamento aventureiroOs ventos esta injúria assim sentiram,Vós, a quem mais compete esta vingança,Que esperais?Porque a pondes em tardança?
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32 | E não consinto, Deuses, que cuideisQue por amor de vós do céu desci,Nem da mágoa da injúria que sofreis,Mas da que se me faz também a mi;Que aquelas grandes honras, que sabeisQue no mundo ganhei, quando venciAs terras Indianas do Oriente,Todas vejo abatidas desta gente.
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33 | Que o grã Senhor e Fados que destinam,Como lhe bem parece, o baixo mundo,Famas mores que nunca determinamDe dar a estes barões no mar profundo.Aqui vereis, ó Deuses, como ensinamO mal também a Deuses: que, a segundoSe vê, ninguém já tem menos valia,Que quem com mais razão valer devia.
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34 | E por isso do Olimpo já fugi,Buscando algum remédio a meus pesares,Por ver o preço que no Céu perdi,Se por dita acharei nos vossos mares.Mais quis dizer, e não passou daqui,Porque as lágrimas já correndo a paresLhe saltaram dos olhos, com que logoSe acendem as Deidades d'água em fogo.
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35 | A ira com que súbito alteradoO coração dos Deuses foi num ponto,Não sofreu mais conselho bem cuidado,Nem dilação, nem outro algum desconto.Ao grande Eolo mandam já recadoDa parte de Netuno, que sem contoSolte as fúrias dos ventos repugnantes,Que não haja no mar mais navegantes.
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36 | Bem quisera primeiro ali ProteuDizer neste negócio o que sentia,E segundo o que a todos pareceu,Era alguma profunda profecia.Porém tanto o tumulto se moveuSúbito na divina companhia,Que Tethys indignada lhe bradou:Netuno sabe bem o que mandou.
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37 | Já lá o soberbo Hipótades soltavaDo cárcere fechado os furiososVentos, que com palavras animavaContra os varões audazes e animosos.Súbito o céu sereno se obumbrava,Que os ventos, mais que nunca impetuosos,Começam novas forças a ir tomando,Torres, montes e casas derribando.
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38 | Enquanto este conselho se faziaNo fundo aquoso, a leda lassa frotaCom vento sossegado prosseguia,Pelo tranquilo mar, a longa rota.Era no tempo quando a luz do diaDo Eôo Hemisfério está remota;Os do quarto da prima se deitavam,Para o segundo os outros despertavam.
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39 | Vencidos vêm do sono, e mal despertos;Bocejando a miúdo se encostavamPelas antenas, todos mal cobertosContra os agudos ares, que assopravam;Os olhos contra seu querer abertos,Alas estregando, os membros estiravam;Remédios contra o sono buscar querem,Histórias contam, casos mil referem.
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40 | Com que melhor podemos, um dizia,Este tempo passar, que é tão pesado,Senão com algum conto de alegria,Com que nos deixe o sono carregado?Responde Leonardo, que traziaPensamentos de firme namorado:Que contos poderemos ter melhores,Para passar o tempo, que de amores?
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41 | Não é, disse Veloso, coisa justaTratar branduras em tanta aspereza;Que o trabalho do mar, que tanto custa,Não sofre amores, nem delicadeza;Antes de guerra férvida e robustaA nossa história seja, pois durezaNossa vida há de ser, segundo entendo,Que o trabalho por vir me está dizendo.
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42 | Consentem nisto todos, e encomendamA Veloso que conte isto que aprova.Contarei, disse, sem que me repreendamDe contar cousa fabulosa ou nova;E porque os que me ouvirem daqui aprendamA fazer feitos grandes de alta prova,Dos nascidos direi na nossa terra,E estes sejam os doze de Inglaterra.
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43 | No tempo que do Reino a rédea leveJoão, filho de Pedro, moderava,Depois que sossegado e livre o teveDo vizinho poder, que o molestava,Lá na grande Inglaterra, que da neveBoreal sempre abunda, semeavaA fera Erínis dura e má cizânia,Que lustre fosse a nossa Lusitânia.
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44 | Entre as damas gentis da corte InglesaE nobres cortesãos, acaso um diaSe levantou discórdia em ira acesa,Ou foi opinião, ou foi porfia.Os cortesãos, a quem tão pouco pesaSoltar palavras graves de ousadia,Dizem que provarão, que honras e famasEm tais damas não há para ser damas;
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45 | E que se houver alguém, com lança e espada,Que queira sustentar a parte sua,Que eles, em campo raso ou estacada,Lhe darão feia infâmia, ou morte crua.A feminil fraqueza Pouco usada,Ou nunca, a opróbrios tais, vendo-se nuaDe forças naturais convenientes,Socorro pede a amigos e parentes.
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46 | Mas como fossem grandes e possantesNo reino os inimigos, não se atrevemNem parentes, nem férvidos amantes,A sustentar as damas, como devem.Com lágrimas formosas e bastantesA fazer que em socorro os Deuses levemDe todo o Céu, por rostos de alabastro,Se vão todas ao duque de Alencastro.
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47 | Era este Inglês potente, e militaraCom os Portugueses já contra Castela,Onde as forças magnânimas provaraDos companheiros, e benigna estrela:Não menos nesta terra experimentaraNamorados afeitos, quando nelaA filha viu, que tinto o peito domaDo forte Rei, que por mulher a toma.
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48 | Este, que socorrer-lhe não queria,Por não causar discórdias intestinas,Lhe diz: - Quando o direito pretendiaDo reino lá das terras Iberinas,Nos Lusitanos vi tanta ousadia,Tanto primor, e partes tão divinas,Que eles sós poderiam, se não erro,Sustentar vossa parte a fogo e ferro.
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49 | E se, agravadas damas, sois servidas,Por vós lhe mandarei embaixadores,Que, por cartas discretas e polidas,De vosso agravo os façam sabedores.Também por vossa parto encarecidasCom palavras de afagos e de amoresLhe sejam vossas lágrimas, que eu creioQue ali tereis socorro e forte esteio. -
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50 | Destarte as aconselha o Duque experto,E logo lhe nomeia doze fortes;E por que cada dama um tenha certo,Lhe manda que sobre eles lancem sortes,Que elas só doze são; e descobertoQual a qual tem caído das consertes,Cada uma escreve ao seu por vários modos,E todas a seu Rei, e o Duque a todos.
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51 | Já chega a Portugal o mensageiro;Toda a corte alvoroça a novidade;Quisera o Rei sublime ser primeiro,Mas não lhe sofre a Régia Majestade.Qualquer dos cortesãos aventureiroDeseja ser, com férvida vontade,F, só fica por bem-aventuradoQuem já vem pelo Duque nomeado.
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52 | Lá na leal Cidade, donde teveOrigem (como é fama) o nome eternoDe Portugal, armar madeiro leveManda o que tem o leme do governo.Apercebem-se os doze, em tempo breve,De armas, e roupas de uso mais moderno,De elmos, cimeiras, letras, e primores,Cavalos, e concertos de mil cores.
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53 | Já do seu Rei tomado têm licençaPara partir do Douro celebradoAqueles, que escolhidos por sentençaForam do Duque Inglês experimentado.Não há na companhia diferençaDe cavaleiro destro ou esforçado;Mas um só, que Magriço se dizia,Destarte fala à forte companhia:
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54 | Fortíssimos consócios, eu desejoHá muito já de andar terras estranhas,Por ver mais águas que as do Douro o Tejo,Várias gentes, e leis, e várias manhas.Agora, que aparelho certo vejo,(Pois que do mundo as coisas são tamanhas)Quero, se me deixais, ir só por terra,Porque eu serei convosco em Inglaterra.
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55 | E quando caso for que eu impedidoPor quem das cousas é última linha,Não for convosco ao prazo instituído,Pouca falta vos faz a falta minha:Todos por mim fareis o que é devido;Mas, se a verdade o espírito me adivinha,Rios, montes, fortuna, ou sua inveja,Não farão que eu convosco lá não seja.
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56 | Assim diz, e abraçados os amigos,E tomada licença, enfim se parte:Passa Lião, Castela, vendo antigosLugares, que ganhara o pátrio Marte;Navarra, com os altíssimos perigosDo Perineu, que Espanha e Gália parte;Vistas enfim de França as coisas grandes,No grande empório foi parar de Frandes.
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57 | Ali chegado, ou fosse caso ou manha,Sem passar se deteve muitos dias:Mas dos onze a ilustríssima companhaCortam do mar do Norte as ondas frias.Chegados de Inglaterra à costa estranha,Para Londres já fazem todos vias.Do Duque são com festa agasalhados,E das damas servidos e amimados.
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58 | Chega-se o prazo e dia assinaladoDe entrar em campo já com os doze Ingleses,Que pelo Rei já tinham segurado:Armam-se de elmos, grevas e de arneses:Já as damas têm por si, fulgente e armado,O Mavorte feroz dos Portugueses;Vestem-se elas de cores e de sedas,De ouro e de jóias mil, ricas e ledas.
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59 | Mas aquela, a quem fora em sorte dadoMagriço, que não vinha, com tristezaSe veste, por não ter quem nomeadoSeja seu cavaleiro nesta empresa;Bem que os onze apregoam, que acabadoSerá o negócio assim na corte Inglesa,Que as damas vencedoras se conheçam,Posto que dois e três dos seus faleçam.
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60 | Já num sublime e público teatroSe assenta o Rei Inglês com toda a corte:Estavam três e três, e quatro e quatro,Bem como a cada qual coubera em sorte.Não são vistos do Sol, do Tejo ao Batro,De força, esforço e de ânimo mais forteOutros doze sair, como os Ingleses,No campo, contra os onze Portugueses.
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61 | Mastigam os cavalos, escumando,Os áureos freios com feroz semblante;Estava o Sol nas armas rutilandoComo em cristal ou rígido diamante;Mas enxerga-se num e noutro bandoPartido desigual e dissonanteDos onze contra os doze: quando a genteComeça a alvoroçar-se geralmente.
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62 | Viram todos o rosto aonde haviaA causa principal do reboliço:Eis entra um cavaleiro, que traziaArmas, cavalo, ao bélico serviço.Ao Rei e às damas fala, e logo se iaPara os onze, que este era o grã Magriço;Abraça os companheiros como amigos,A quem não falta certo nos perigos.
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63 | A dama, como ouviu que este era aqueleQue vinha a defender seu nome e fama,Se alegra, e veste ali do animal de Hele,Que a gente bruta mais que virtude ama.Já dão sinal, e o som da tuba impeleOs belicosos ânimos, que inflama:Picam de esporas, largam rédeas logo,Abaixam lanças, fere a terra fogo.
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64 | Dos cavalos o estrépito pareceQue faz que o chão debaixo todo treme;O coração no peito, que estremeceDe quem os olha, se alvoroça e teme:Qual do cavalo voa, que não desce;Qual, com o cavalo em terra dando, geme;Qual vermelhas as armas faz de brancas;Qual com os penachos do elmo açouta as ancas.
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65 | Algum dali tomou perpétuo sonoE fez da vida ao fim breve intervalo;Correndo algum cavalo vai sem donoE noutra parte o dono sem cavalo.Cai a soberba Inglesa de seu trono,Que dois ou três já fora vão do vale;Os que de espada vêm fazer batalha,Mais acham já que arnês, escudo e malha.
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66 | Gastar palavras em contar extremosDe golpes feros, cruas estocadas,É desses gastadores, que sabemos,Maus do tempo, com fábulas sonhadas.Basta, por fim do caso, que entendemosQue com finezas altas e afamadas,Com os nossos fica a palma da vitória,E as damas vencedoras, e com glória.
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67 | Recolhe o Duque os doze vencedoresNos seus paços, com festas e alegria;Cozinheiros ocupa e caçadoresDas damas a formosa companhia,Que querem dar aos seus libertadoresBanquetes mil cada hora e cada dia,Enquanto se detêm em Inglaterra,Até tornar à doce e cara terra.
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68 | Mas dizem que, contudo, o grã Magriço,Desejoso de ver as coisas grandes,Lá se deixou ficar, onde um serviçoNotável à condessa fez de Frandes;E como quem não era já noviçoEm todo trance, onde tu, Marte, mandes,Um Francês mata em campo, que o destinoLá teve de Torcato e de Corvino.
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69 | Outro também dos doze em AlemanhaSe lança, e teve um fero desafioCom um Germano enganoso, que com manhaNão devida o quis pôr no extremo fio.Contando assim Veloso, já a companhaLhe pede que não f aça tal desvioDo caso de Magriço, e vencimento,Nem deixe o de Alemanha em esquecimento.
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70 | Mas, neste passo, assim prontos estandoEis o mestre, que olhando os ares anda,O apito toca; acordam despertandoOs marinheiros duma e doutra banda;E porque o vento vinha refrescando,Os traquetes das gáveas tomar manda:Alerta, disse, estai, que o vento cresceDaquela nuvem negra que aparece.
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71 | Não eram os traquetes bem tomados,Quando dá a grande e súbita procela:Amaina, disse o mestre a grandes brados,Amaina, disse, amaina a grande vela!Não esperam os ventos indinadosQue amainassem; mas juntos dando nela,Em pedaços a fazem, com um ruídoQue o mundo pareceu ser destruído.
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72 | O céu fere com gritos nisto a gente,Com súbito temor e desacordo,Que, no romper da vela, a nau pendenteToma grã suma d'água pelo bordo:Alija, disse o mestre rijamente,Alija tudo ao mar; não falte acordo.Vão outros dar à bomba, não cessando;A bomba, que nos imos alagando!
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73 | Correm logo os soldados animososA dar à bomba; e, tanto que chegaram,Os balanços que os mares temerososDeram à nau, num bordo os derribaram.Três marinheiros, duros e forçosos,A menear o leme não bastaram;Talhas lhe punham duma e doutra parte,Sem aproveitar dos homens força e arte.
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74 | Os ventos eram tais, que não puderamMostrar mais força do ímpeto cruel,Se para derribar então vieramA fortíssima torre de Babel.Nos altíssimos mares, que cresceram,A pequena grandura dum batelMostra a possante nau, que move espanto,Vendo que se sustém nas ondas tanto.
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75 | A nau grande, em que vai Paulo da Gama,Quebrado leva o masto pelo meio.Quase toda alagada: a gente chamaAquele que a salvar o mundo veio.Não menos gritos vãos ao ar derramaToda a nau de Coelho, com receio,Conquanto teve o mestre tanto tento,Que primeiro amainou, que desse o vento.
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76 | Agora sobre as nuvens os subiamAs ondas de Netuno furibundo;Agora a ver parece que desciamAs íntimas entranhas do Profundo.Noto, Austro, Bóreas, Aquilo queriamArruinar a máquina do mundo:A noite negra e feia se alumiaCom os raios, em que o Pólo todo ardia.
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77 | As Alcióneas aves triste cantoJunto da costa brava levantaram,Lembrando-se do seu passado pranto,Que as furiosas águas lhe causaram.Os delfins namorados entretantoLá nas covas marítimas entraram,Fugindo à tempestade e ventos duros,Que nem no fundo os deixa estar segui-os.
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78 | Nunca tão vivos raios fabricouContra a fera soberba dos GigantesO grã ferreiro sórdido, que obrouDo enteado as armas radiantes;Nem tanto o grã Tonante arremessouRelâmpagos ao mundo fulminantes,No grã dilúvio, donde sós viveramOs dois que em gente as pedras converteram.
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79 | Quantos montes, então, que derribaramAs ondas que batiam denodadas!Quantas árvores velhas arrancaramDo vento bravo as fúrias indinadas!As forçosas raízes não cuidaramQue nunca para o céu fossem viradas,Nem as fundas areias que pudessemTanto os mares que em cima as revolvessem.
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80 | Vendo Vasco da Gama que tão pertoDo fim de seu desejo se perdia;Vendo ora o mar até o inferno aberto,Ora com nova fúria ao céu subia,Confuso de temor, da vida incerto,Onde nenhum remédio lhe valia,Chama aquele remédio santo é forte,Que o impossível pode, desta sorte:
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81 | Divina Guarda, angélica, celeste,Que os céus, o mar e terra senhoreias;Tu, que a todo Israel refúgio destePor metade das águas Eritreias;Tu, que livraste Paulo e o defendesteDas Sirtes arenosas e ondas feias,E guardaste com os filhos o segundoPovoador do alagado e vácuo mundo;
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82 | Se tenho novos modos perigososDoutra Cila e Caríbdis já passados,Outras Sirtes e baixos arenosos,Outros Acroceráunios infamados,No fim de tantos casos trabalhosos,Por que somos de ti desamparados,Se este nosso trabalho não te ofende,Mas antes teu serviço só pretende?
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83 | Ó ditosos aqueles que puderamEntre as agudas lanças AfricanasMorrer, enquanto fortes sostiveramA santa Fé nas terras Mauritanas!De quem feitos ilustres se souberam,De quem ficam memórias soberanas,De quem se ganha a vida com perdê-la,Doce fazendo a morte as honras dela!
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84 | Assim dizendo, os ventos que lutavamComo touros indómitos bramando,Mais e mais a tormenta acrescentavamPela miúda enxárcia assoviando.Relâmpados medonhos não cessavam,Feros trovões, que vêm representandoCair o céu dos eixos sobre a terra,Consigo os elementos terem guerra.
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85 | Mas já a amorosa estrela cintilavaDiante do Sol claro, no Horizonte,Mensageira do dia, e visitavaA terra e o largo mar, com leda fronte.A densa que nos céus a governava,De quem foge o ensífero Orionte,Tanto que o mar e a cara armada vira,Tocada junto foi de medo e de ira.
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86 | Estas obras de Baco são, por certo,Disse; mas não será que avante leveTão danada tenção, que descobertoMe será sempre o mil a que se atreve.Isto dizendo, desce ao mar aberto,No caminho gastando espaço breve,Enquanto manda as Ninfas amorosasGrinaldas nas cabeças pôr de rosas.
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87 | Grinaldas manda pôr de várias coresSobre cabelo; louros à porfia.Quem não dirá que nascem roxas floresSobre ouro natural, que Amor enfia?Abrandar determina, por amores,Dos ventos a nojosa companhia,Mostrando-lhe as amadas Ninfas belas,Que mais formosas vinham que as estrelas.
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88 | Assim foi; porque, tanto que chegaramA vista delas, logo lhe falecemAs forças com que dantes pelejaram,E já como rendidos lhe obedecem.Os pés e mãos parece que lhe ataramOs cabelos que os raios escurecem.A Bóreas, que do peito mais queria,Assim disse a belíssima Oritia:
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89 | Não creias, fero Bóreas, que te creioQue me tiveste nunca amor constante,Que brandura é de amor mais certo arreio,E não convém furor a firme amante.Se já não pões a tanta insânia freio,Não esperes de mi, daqui em diante,Que possa mais amar-te, mas temer-te;Que amor contigo em medo se converte.
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90 | Assim mesmo a formosa GalateiaDizia ao fero Noto, que bem sabeQue dias há que em vê-la se recreia,E bem crê que com ele tudo acabe.Não sabe o bravo tanto bem se o creia,Que o coração no peito lhe não cabe,De contente de ver que a dama o manda,Pouco cuida que faz, se logo abranda.
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91 | Desta maneira as outras amansavamSubitamente os outros amadores;E logo à linda Vénus se entregavam,Amansadas as iras e os furores.Ela lhe prometeu, vendo que amavam,Sempiterno favor em seus amores,Nas belas mãos tomando-lhe homenagemDe lhe serem leais esta viagem.
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92 | Já a manhã clara dava nos outeirosPor onde o Ganges murmurando soa,Quando da celsa gávea os marinheirosEnxergaram terra alta pela proa.Já fora de tormenta, e dos primeirosMares, o temor vão do peito voa.Disse alegre o piloto Melindano:Terra é de Calecu, se não me engano.
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93 | Esta é por certo a terra que buscaisDa verdadeira Índia, que aparece;E se do mundo mais não desejais,Vosso trabalho longo aqui fenece.Sofrer aqui não pode o Gama mais,De ledo em ver que a terra se conhece:Os geolhos no chão, as mãos ao céu,A mercê grande a Deus agradeceu.
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94 | As graças a Deus dava, e razão tinha,Que não somente a terra lhe mostrava,Que com tanto temor buscando vinha,Por quem tanto trabalho experimentava;Mas via-se livrado tão asinhaDa morte, que no mar lhe aparelhavaO vento duro, fervido e medonho,Como quem despertou de horrendo sonho.
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95 | Por meio destes hórridos perigos,Destes trabalhos graves e temores,Alcançam os que são de fama amigosAs honras imortais e graus maiores:Não encostados sempre nos antigosTroncos nobres de seus antecessores;Não nos leitos dourados, entre os finosAnimais de Moscóvia zebelinos;
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96 | Não com os manjares novos e esquisitos,Não com os passeios moles e ociosos,Não com os vários deleites e infinitos,Que afeminam os peitos generosos,Não com os nunca vencidos apetitosQue a Fortuna tem sempre tão mimosos,Que não sofre a nenhum que o passo mudePara alguma obra heróica de virtude;
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97 | Mas com buscar com o seu forçoso braçoAs honras, que ele chame próprias suas;Vigiando, e vestindo o forjado aço,Sofrendo tempestades e ondas cruas;Vencendo os torpes frios no regaçoDo Sul e regiões de abrigo nuas;Engolindo o corrupto mantimento,Temperado com um árduo sofrimento;
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98 | E com forçar o rosto, que se enfia,A parecer seguro, ledo, inteiro,Para o pelouro ardente, que assoviaE leva a perna ou braço ao companheiro.Destarte, o peito um calo honroso cria,Desprezador das honras e dinheiro,Das honras e dinheiro, que a venturaForjou, e não virtude justa e dura.
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99 | Destarte se esclarece o entendimento,Que experiências fazem repousado,E fica vendo, corno de alto assento,O baixo trato humano embaraçado.Este, onde tiver força o regimentoDireito, e não de afeitos ocupado,Subirá (como deve) a ilustre mando,Contra vontade sua, e não rogando.
FIM. |