Luís Vaz de Camões
1524/25 -1580
Os Lusíadas
Canto V
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Canto quinto.
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1 | Estas sentenças tais o velho honradoVociferando estava, quando abrimosAs asas ao sereno e sossegadoVento, e do porto amado nos partimos.E, como é já no mar costume usado,A vela desfraldando, o céu ferimos,Dizendo: Boa viagem, logo o ventoNos troncos fez o usado movimento.
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2 | Entrava neste tempo o eterno lumeNo animal Nemeio truculento,E o mundo, que com tempo se consume,Na sexta idade andava enfermo e lento:Nela vê, como tinha por costume,Cursos do sol quatorze vezes cento,Com mais noventa e sete, em que corria,Quando no mar a armada se estendia.
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3 | Já a vista pouco e pouco se desterraDaqueles pátrios montes que ficavam;Ficava o caro Tejo, e a fresca serraDe Sintra, e nela os olhos se alongavam.Ficava-nos também na amada terraO coração, que as mágoas lá deixavam;E já depois que toda se escondeu,Não vimos mais enfim que mar e céu.
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4 | Assim fomos abrindo aqueles mares,Que geração alguma não abriu,As novas ilhas vendo e os novos ares,Que o generoso Henrique descobriu;De Mauritânia os montes e lugares,Terra que Anteu num tempo possuiu,Deixando à mão esquerda; que à direitaNão há certeza doutra, mas suspeita.
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5 | Passamos a grande Ilha da Madeira,Que do muito arvoredo assim se chama,Das que nós povoamos, a primeira,Mais célebre por nome que por fama:Mas nem por ser do mundo a derradeiraSe lhe aventajam quantas Vénus ama,Antes, sendo esta sua, se esqueceraDe Cipro, Gnido, Pafos e Citera.
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6 | Deixamos de Massília a estéril costa,Onde seu gado os Azenegues pastam,Gente que as frescas águas nunca gostaNem as ervas do campo bem lhe abastam:A terra a nenhum fruto enfim disposta,Onde as aves no ventre o ferro gastam,Padecendo de tudo extrema inópia,Que aparta a Barbaria de Etiópia.
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7 | Passamos o limite aonde chegaO Sol, que para o Norte os carros guia,Onde jazem os povos a quem negaO filho de Climene a cor do dia.Aqui gentes estranhas lava e regaDo negro Sanagá a corrente fria,Onde o Cabo Arsinário o nome perde,Chamando-se dos nossos Cabo Verde.
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8 | Passadas tendo já as Canárias ilhas,Que tiveram por nome Fortunadas,Entramos, navegando, pelas filhasDo velho Hespério, Hespérides chamadas;Terras por onde novas maravilhasAndaram vendo já nossas armadas.Ali tomamos porto com bom vento,Por tomarmos da terra mantimento.
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9 | Aquela ilha apartamos, que tomouO nome do guerreiro Santiago,Santo que os Espanhóis tanto ajudouA fazerem nos Mouros bravo estrago.Daqui, tanto que Bóreas nos ventou,Tornamos a cortar o imenso lagoDo salgado Oceano, e assim deixamosA terra onde o refresco doce achamos.
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10 | Por aqui rodeando a larga parteDe África, que ficava ao Oriente,A província Jalofo, que repartePor diversas nações a negra gente;A mui grande Mandinga, por cuja arteLogramos o metal rico e luzente,Que do curvo Gambeia as águas bebe,As quais o largo Atlântico recebe.
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11 | As Dórcadas passamos, povoadasDas Irmãs, que outro tempo ali viviam,Que de vista total sendo privadas,Todas três dum só olho se serviam.Tu só, tu, cujas tranças encrespadasNetuno lá nas águas acendiam,Tornada já de todas a mais feia,De bívoras encheste a ardente areia.
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12 | Sempre enfim para o Austro a aguda proaNo grandíssimo gólfão nos metemos,Deixando a serra aspérrima Leoa,Co'o cabo a quem das Palmas nome demos.O grande rio, onde batendo soaO mar nas praias notas que ali temos,Ficou, com a Ilha ilustre que tomouO nome dum que o lado a Deus tocou.
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13 | Ali o mui grande reino está de Congo,Por nós já convertido à fé de Cristo,Por onde o Zaire passa, claro e longo,Rio pelos antigos nunca visto.Por este largo mar enfim me alongoDo conhecido pólo de Calisto,Tendo o término ardente já passado,Onde o meio do mundo é limitado.
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14 | Já descoberto tínhamos diante,Lá no novo Hemisfério, nova estrela,Não vista de outra gente, que ignoranteAlguns tempos esteve incerta dela.Vimos a parte menos rutilante,E, por falta de estrelas, menos bela,Do Pólo fixo, onde ainda se não sabeQue outra terra comece, ou mar acabe.
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15 | Assim passando aquelas regiõesPor onde duas vezes passa Apolo,Dois invernos fazendo e dois verões,Enquanto corre dum ao outro Pólo,Por calmas, por tormentas e opressões,Que sempre f az no mar o irado Eolo,Vimos as Ursas, apesar de Juno,Banharem-se nas águas de Netuno.
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16 | Contar-te longamente as perigosasCoisas do mar, que os homens não entendem:Súbitas trovoadas temerosas,Relâmpados que o ar em fogo acendem,Negros chuveiros, noites tenebrosas,Bramidos de trovões que o mundo fendem,Não menos é trabalho, que grande erro,Ainda que tivesse a voz de ferro.
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17 | Os casos vi que os rudos marinheiros,Que têm por mestra a longa experiência,Contam por certos sempre e verdadeiros,Julgando as cousas só pela aparência,E que os que têm juízos mais inteiros,Que só por puro engenho e por ciência,Vêem do mundo os segredos escondidos,Julgam por falsos, ou mal entendidos.
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18 | Vi, claramente visto, o lume vivoQue a marítima gente tem por santoEm tempo de tormenta e vento esquivo,De tempestade escura e triste pranto.Não menos foi a todos excessivoMilagre, e coisa certo de alto espanto,Ver as nuvens do mar com largo canoSorver as altas águas do Oceano.
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19 | Eu o vi certamente (e não presumoQue a vista me enganava) levantar-seNo ar um vaporzinho e subtil fumo,E, do vento trazido, rodear-se:Daqui levado um cano ao pólo sumoSe via, tão delgado, que enxergar-seDos olhos facilmente não podia:Da matéria das nuvens parecia.
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20 | Ia-se pouco e pouco acrescentandoE mais que um largo masto se engrossava;Aqui se estreita, aqui se alarga, quandoOs golpes grandes de água em si chupava;Estava-se coas ondas ondeando:Em cima dele uma nuvem se espessava,Fazendo-se maior, mais carregadaCo'o cargo grande d'água em si tomada.
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21 | Qual roxa sanguessuga se veriaNos beiços da alimária (que imprudente,Bebendo a recolheu na fonte fria)Fartar co'o sangue alheio a sede ardente;Chupando mais e mais se engrossa e cria,Ali se enche e se alarga grandemente:Tal a grande coluna, enchendo, aumentaA si, e a nuvem negra que sustenta.
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22 | Mas depois que de todo se fartou,O pó que tem no mar a si recolhe,E pelo céu chovendo enfim voou,Porque coa água a jacente água molhe:As ondas torna as ondas que tomou,Mas o sabor do sal lhe tira e tolhe.Vejam agora os sábios na escritura,Que segredos são estes de Natura.
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23 | Se os antigos filósofos, que andaramTantas terras, por ver segredos delas,As maravilhas que eu passei, passaram,A tão diversos ventos dando as velas,Que grandes escrituras que deixaram!Que influição de signos e de estrelas!Que estranhezas, que grandes qualidades!E tudo sem mentir, puras verdades.
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24 | Mas já o Planeta que no céu primeiroHabita, cinco vezes apressada,Agora meio rosto, agora inteiroMostrara, enquanto o mar cortava a armada,Quando da etérea gávea um marinheiro,Pronto coa vista, Terra! Terra! brada.Salta no bordo alvoroçada a genteCo'os olhos no horizonte do Oriente.
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25 | A maneira de nuvens se começamA descobrir os montes que enxergamos;As âncoras pesadas se adereçam;As velas, já chegados, amainamos.E para que mais certas se conheçamAs partes tão remotas onde estamos,.Pelo novo instrumento do Astrolábio,Invenção de subtil juízo e sábio,
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26 | Desembarcamos logo na espaçosa,Parte, por onde a gente se espalhou,De ver eousas estranhas desejosaDa terra que outro povo não pisou;Porém eu co'os pilotos na arenosaPraia, por vermos em que parte estou,Me detenho em tomar do Sol a alturaE compassar a universal pintura.
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27 | Achamos ter de todo já passadoDo Semicapro peixe a grande meta,Estando entre ele e o círculo geladoAustral, parte do mundo mais secreta.Eis, de meus companheiros rodeado,Vejo um estranho vir de pele preta,Que tomaram por força, enquanto apanhaDe mel os doces favos na montanha.
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28 | Torvado vem na vista, como aqueleQue não se vira nunca em tal extremo;Nem ele entende a nós, nem nós a ele,Selvagem mais que o bruto Polifemo.Começo-lhe a mostrar da rica peloDe Colcos o gentil metal supremo,A prata fina, a quente especiaria:A nada disto o bruto se movia.
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29 | Mando mostrar-lhe peças mais somenos:Contas de cristalino transparente,Alguns soantes cascavéis pequenos,Um barrete vermelho, cor contente.Vi logo, por sinais e por acenos,Que com isto se alegra grandemente.Mando-o soltar com tudo, e assim caminhaPara a povoação que perto tinha.
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30 | Mas logo ao outro dia, seus parceiros,Todos nus, e da cor da escura treva,Descendo pelos ásperos outeiros,As peças vêm buscar que estoutro leva:Domésticos já tanto e companheirosSe nos mostram, que fazem que se atrevaFernão Veloso a ir ver da terra o tratoE partir-se com eles pelo mato.
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31 | É Veloso no braço confiado,E de arrogante crê que vai seguro;Mas, sendo um grande espaço já passado,Em que algum bom sinal saber procuro,Estando, a vista alçada, co'o cuidadoNo aventureiro, eis pelo monto duroAparece, e, segundo ao mar caminha,Mais apressado do que fora, vinha.
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32 | O batel de Coelho foi depressaPelo tomar; mas, antes que chegasse,Um Etíope ousado se arremessaA ele, por que não se lhe escapasse;Outro e outro lhe saem; vê-se em pressaVeloso, sem que alguém lhe ali ajudasse;Acudo eu logo, e enquanto o remo aperto,Se mostra um bando negro descoberto.
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33 | Da espessa nuvem setas e pedradasChovem sobre nós outros sem medida;E não foram ao vento em vão deitadas,Que esta perna trouxe eu dali ferida;Mas nós, como pessoas magoadas,A resposta lhe demos tão tecida,Que, em mais que nos barretes, se suspeitaQue a cor vermelha levam desta feita.
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34 | E sendo já, Veloso em salvamento,Logo nos recolhemos para a armada,Vendo a malícia feia e rudo intentoDa gente bestial, bruta e malvada,De quem nenhum melhor conhecimentoPudemos ter da índia desejadaQue estarmos ainda muito longe dela;E assim tornei a dar ao vento a vela.
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35 | Disse então a Veloso um companheiro(Começando-se todos a sorrir)-Ó lá, Veloso amigo, aquele outeiroÉ melhor de descer que de subir.- Sim, é, (responde o ousado aventureiro)Mas quando eu para cá vi tantos virDaqueles cães, depressa um pouco vim,Por me lembrar que estáveis cá sem
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36 | Contou então que, tanto que passaramAquele monte, os negros de quem falo,Avante mais passar o não deixaram,Querendo, se não torna, ali matá-lo;E tornando-se, logo se emboscaram,Por que, saindo nós para tomá-lo,Nos pudessem mandar ao reino escuro,Por nos roubarem mais a seu seguro.
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37 | Porém já cinco Sóis eram passadosQue dali nos partíramos, cortandoOs mares nunca doutrem navegados,Prósperamente os ventos assoprando,Quando uma noite estando descuidados,Na cortadora proa vigiando,Uma nuvem que os ares escureceSobre nossas cabeças aparece.
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38 | Tão temerosa vinha e carregada,Que pôs nos corações um grande medo;Bramindo o negro mar, de longe bradaComo se desse em vão nalgum rochedo.- Ó Potestade, disse, sublimada!Que ameaço divino, ou que segredoEste clima e este mar nos apresenta,Que mor cousa parece que tormenta? -
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39 | Não acabava, quando uma figuraSe nos mostra no ar, robusta e válida,De disforme e grandíssima estatura,O rosto carregado, a barba esquálida,Os olhos encovados, e a posturaMedonha e má, e a cor terrena e pálida,Cheios de terra e crespos os cabelos,A boca negra, os dentes amarelos.
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40 | Tão grande era de membros, que bem possoCertificar-te, que este era o segundoDe Rodes estranhíssimo Colosso,Que um dos sete milagres foi do mundo:Com um tom de voz nos fala horrendo e grosso,Que pareceu sair do mar profundo:Arrepiam-se as carnes e o cabeloA mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo.
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41 | E disse: - Ó gente ousada, mais que quantasNo mundo cometeram grandes cousas,Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,E por trabalhos vãos nunca repousas,Pois os vedados términos quebrantas,E navegar meus longos mares ousas,Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho,Nunca arados d'estranho ou próprio lenho:
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42 | Pois vens ver os segredos escondidosDa natureza e do úmido elemento,A nenhum grande humano concedidosDe nobre ou de imortal merecimento,Ouve os danos de mim, que apercebidosEstão a teu sobejo atrevimento,Por todo o largo mar e pela terra,Que ainda hás de sojugar com dura guerra.
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43 | Sabe que quantas naus esta viagemQue tu fazes, fizerem de atrevidas,Inimiga terão esta paragemCom ventos e tormentas desmedidas.E da primeira armada que passagemFizer por estas ondas insofridas,Eu farei d'improviso tal castigo,Que seja mor o dano que o perigo.
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44 | Aqui espero tomar, se não me engano,De quem me descobriu, suma vingança.E não se acabará só nisto o danoDa vossa pertinace confiança;Antes em vossas naus vereis cada ano,Se é verdade o que meu juízo alcança,Naufrágios, perdições de toda sorte,Que o menor mal de todos seja a morte.
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45 | É do primeiro Ilustre, que a venturaCom fama alta fizer tocar os Céus,Serei eterna e nova sepultura,Por juízos incógnitos de Deus.Aqui porá da Turca armada duraOs soberbos e prósperos troféus;Comigo de seus danos o ameaçaA destruída Quíloa com Mombaça.
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46 | Outro também virá de honrada fama,Liberal, cavaleiro, enamorado,E consigo trará a formosa damaQue Amor por grã mercê lhe terá dado.Triste ventura e negro fado os chamaNeste terreno meu, que duro e iradoOs deixará dum cru naufrágio vivosPara verem trabalhos excessivos.
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47 | Verão morrer com fome os filhos caros,Em tanto amor gerados e nascidos;Verão os Cafres ásperos e avarosTirar à linda dama seus vestidos;Os cristalinos membros e perclarosA calma, ao frio, ao ar verão despidos,Depois de ter pisada longamenteCo'os delicados pés a areia ardente.
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48 | E verão mais os olhos que escaparemDe tanto mal, de tanta desventura,Os dois amantes míseros ficaremNa férvida e implacável espessura.Ali, depois que as pedras abrandaremCom lágrimas de dor, de mágoa pura,Abraçados as almas soltarãoDa formosa e misérrima prisão. -
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49 | Mais ia por diante o monstro horrendoDizendo nossos fados, quando alçadoLhe disse eu: - Quem és tu? que esse estupendoCorpo certo me tem maravilhado.-A boca e os olhos negros retorcendo,E dando um espantoso e grande brado,Me respondeu, com voz pesada e amara,Como quem da pergunta lhe pesara:
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50 | Eu sou aquele oculto e grande Cabo,A quem chamais vós outros Tormentório,Que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo,Plínio, e quantos passaram, fui notório.Aqui toda a Africana costa acaboNeste meu nunca visto Promontório,Que para o Pólo Antarctico se estende,A quem vossa ousadia tanto ofende.
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51 | Fui dos filhos aspérrimos da Terra,Qual Encélado, Egeu e o Centimano;Chamei-me Adamastor, e fui na guerraContra o que vibra os raios de Vulcano;Não que pusesse serra sobre serra,Mas conquistando as ondas do Oceano,Fui capitão do mar, por onde andavaA armada de Netuno, que eu buscava.
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52 | Amores da alta esposa de PeleuMe fizeram tomar tamanha empresa.Todas as Deusas desprezei do céu,Só por amar das águas a princesa.Um dia a vi coas filhas de NereuSair nua na praia, e logo presaA vontade senti de tal maneiraQue ainda não sinto coisa que mais queira.
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53 | Como fosse impossível alcançá-laPela grandeza feia de meu gesto,Determinei por armas de tomá-la,E a Doris este caso manifesto.De medo a Deusa então por mim lhe fala;Mas ela, com um formoso riso honesto,Respondeu: - Qual será o amor bastanteDe Ninfa que sustente o dum Gigante?
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54 | Contudo, por livrarmos o OceanoDe tanta guerra, eu buscarei maneira,Com que, com minha honra, escuse o dano.Tal resposta me torna a mensageira.Eu, que cair não pude neste engano,(Que é grande dos amantes a cegueira)Encheram-me com grandes abondançasO peito de desejos e esperanças.
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55 | Já néscio, já da guerra desistindo,Uma noite de Dóris prometida,Me aparece de longe o gesto lindoDa branca Tétis única despida:Como doido corri de longe, abrindoOs braços, para aquela que era vidaDeste corpo, e começo os olhos belosA lhe beijar, as faces e os cabelos.
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56 | Ó que não sei de nojo como o conte!Que, crendo ter nos braços quem amava,Abraçado me achei com um duro monteDe áspero mato e de espessura brava.Estando com um penedo fronte a fronte,Que eu pelo rosto angélico apertavaNão fiquei homem não, mas mudo e quedo,E junto dum penedo outro penedo.
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57 | Ó Ninfa, a mais formosa do Oceano,Já que minha presença não te agrada,Que te custava ter-me neste engano,Ou fosse monte, nuvem, sonho, ou nada?Daqui me parto irado, e quase insanoDa mágoa e da desonra ali passada,A buscar outro inundo, onde não visseQuem de meu pranto e de meu mal se risse,
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58 | Eram já neste tempo meus irmãosVencidos e em miséria extrema postos;E por mais segurar-se os Deuses vãos,Alguns a vários montes sotopostos:E como contra o Céu não valem mãos,Eu, que chorando andava meus desgostos,Comecei a sentir do fado inimigoPor meus atrevimentos o castigo.
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59 | Converte-se-me a carne em terra dura,Em penedos os ossos sefizeram,Estes membros que vês e esta figuraPor estas longas águas se estenderam;Enfim, minha grandíssima estaturaNeste remoto cabo converteramOs Deuses, e por mais dobradas mágoas,Me anda Tétis cercando destas águas. -
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60 | Assim contava, e com um medonho choroSúbito diante os olhos se apartou;Desfez-se a nuvem negra, e com um sonoroBramido muito longe o mar soou.Eu, levantando as mãos ao santo coroDos anjos, que tão longe nos guiou,A Deus pedi que removesse os durosCasos, que Adamastor contou futuros.
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61 | Já Flegon e Piróis vinham tirandoCom os outros dois o carro radiante,Quando a terra alta se nos foi mostrando,Em que foi convertido o grão Gigante.Ao longo desta costa, começandoJá de cortar as ondas do Levante,Por ela abaixo um pouco navegamos,Onde segunda vez terra tomamos.
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62 | A gente que esta terra possuía,Posto que todos Etíopes eram,Mais humana no trato pareciaQue os outros, que tão mal nos receberam.Com bailos e com festas de alegriaPela praia arenosa a nós vieram,As mulheres consigo e o manso gadoQue apascentavam, gordo e bem criado.
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63 | As mulheres queimadas vêm em cimaDos vagarosos bois, ali sentadas,Animais que eles têm em mais estimaQue todo o outro gado das manadas.Cantigas pastoris, ou prosa ou rima,Na sua língua cantam concertadasCom o doce som das rústicas avenas,Imitando de Títiro as Camenas.
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64 | Estes, como na vista prazenteirosFossem, humanamente nos trataram,Trazendo-nos galinhas e carneiros,A troco doutras peças, que levaram.Mas como nunca enfim meus companheirosPalavra sua alguma lhe alcançaramQue desse algum sinal do que buscamos,As velas dando, as âncoras levamos.
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65 | Já aqui tínhamos dado um grã rodeioA costa negra de África, e tornavaA proa a demandar o ardente meioDo Céu, e o pólo Antarctico ficava:Aquele ilhéu deixamos, onde veioOutra armada primeira, que buscavaO Tormentório cabo, e descoberto,Naquele ilhéu fez seu limite certo.
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66 | Daqui fomos cortando muitos diasEntre tormentas tristes e bonanças,No largo mar fazendo novas vias,Só conduzidos de árduas esperanças.Colo mar um tempo andamos em porfias,Que, como tudo nele são mudanças.Corrente nele achamos tão possanteQue passar não deixava por diante.
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67 | Era maior a força em demasia,Segundo para trás nos obrigava,Do mar, que contra nós ali corria,Que por nós a do vento que assoprava.Injuriado Noto da porfiaEm que colo mar (parece) tanto estava,Os assopros esforça iradamente,Com que nos fez vencer a grão corrente.
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68 | Trazia o Sol o dia celebrado,Em que três Reis das partes do OrientoForam buscar um Rei de pouco nado,No qual Rei outros três há juntamente.Neste dia outro porto foi tomadoPor nós, da mesma já contada gente,Num largo rio, ao qual o no e demosDo dia, em que por ele nos metemos.
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69 | Desta gente refresco algum tomamos,E do rio fresca água; mas contudoNenhum sinal aqui da Índia achamosNo Povo, com nós outros quase mudo.Ora vê, Rei, que tamanha terra andamos,Sem sair nunca deste povo rudo,Sem vermos nunca nova nem sinalDa desejada parte Oriental.
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70 | Ora imagina agora coitadosAndaríamos todos, perdidos,De fomes, de tormentas quebrantados,Por climas e por mares não sabidos,E do esperar comprido tão cansados,Quanto a desesperar já compelidos,Por céus não naturais, de qualidadeInimiga de nossa humanidade.
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71 | Corrupto já e danado o mantimento,Danoso e mau ao fraco corpo humano,E além disso nenhum contentamento,Que sequer da esperança fosse engano.Crês tu que, se este nosso ajuntamentoDe soldados não fora Lusitano,Que durara ele tanto obedientePor ventura a seu Rei e a seu regente?
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72 | Crês tu que já não foram levantadosContra seu Capitão, se os resistira,Fazendo-se piratas, obrigadosDe desesperação, de fome, de ira?Grandemente, por certo, estão provados,Pois que nenhum trabalho grande os tiraDaquela Portuguesa alta excelênciaDe lealdade firme, e obediência.
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73 | Deixando o porto enfim do doce rioE tornando a cortar a água salgada,Fizemos desta costa algum desvio,Deitando para o pego toda a armada;Porque, ventando Noto manso e frio,Não nos apanhasse a água da enseada,Que a costa faz ali daquela bandaDonde a rica Sofala o ouro manda.
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74 | Esta passada, logo o leve lemeEncomendado ao sacro Nicolau,Para onde o mar na costa brada e geme,A proa inclina duma e doutra nau;Quando indo o coração que espera e temeE que tanto fiou dum fraco pauDo que esperava já desesperado,Foi duma novidade alvoroçado
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75 | E foi que, estando já da costa perto,Onde as praias e vales bem se viam,Num rio, que ali sai ao mar aberto,Batéis à vela entravam e saíam.Alegria muito grande foi por certoAcharmos já pessoas que sabiamNavegar, porque entre elas esperamosDe achar novas algumas, como achamos.
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76 | Etíopes são todos, mas pareceQue com gente melhor comunicavam;Palavra alguma Arábia se conheceEntre a linguagem sua que falavam;E com pano delgado, que se teceDe algodão, as cabeças apertavam;Com outro, que de tinta azul se tinge,Cada um as vergonhosas partes cinge.
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77 | Pela Arábica língua, que mal falam,E que Fernão Martins muito bem entende,Dizem que por naus, que em grandeza igualamAs nossas, o seu mar se corta e fende;Mas que lá donde sai o Sol, se abalamPara onde a costa ao Sul se alarga e estende,E do Sul para o Sol, terra onde haviaGente, assim como nós, da cor do dia.
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78 | Muito grandemente aqui nos alegramosCom a gente, e com as novas muito mais:Pelos sinais que neste rio achamosO nome lhe ficou dos Bons Sinais.Um padrão nesta terra alevantamos,Que, para assinalar lugares tais,Trazia alguns; o nome tem do beloGuiador de Tobias a Gabelo.
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79 | Aqui de limos, cascas e d'ostrinhos,Nojosa criação das águas fundas,Alimpamos as naus, que dos caminhosLongos do mar, vêm sórdidas e imundas.Dos hóspedes que tínhamos vizinhos,Com mostras aprazíveis e jocundas,louvemos sempre o usado mantimento,Limpos de todo o falso pensamento.
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80 | Mas não foi, da esperança grande e imensaQue nesta terra houvemos, limpa e puraA alegria; mas logo a recompensaA Ramnúsia com nova desventura.Assim no céu sereno se dispensa:Com esta condição pesada e duraNascemos: o pesar terá firmeza,Mas o bem logo muda a natureza.
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81 | E foi que de doença crua e feia,A mais que eu nunca vi, desampararamMuitos a vida, e em terra estranha e alheiaOs ossos para sempre sepultaram.Quem haverá que, sem o ver, o creia?Que tão disformemente ali lhe incharamAs gengivas na boca, que cresciaA carne, e juntamente apodrecia.
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82 | - Apodrecia com um fétido e brutoCheiro, que o ar vizinho inficionava;Não tínhamos ali médico astuto,Cirurgião subtil menos se achava;Mas qualquer, neste ofício pouco instructo,Pela carne já podre assim cortavaComo se fora morta, e bem convinha,Pois que morto ficava quem a tinha.
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83 | Enfim que nesta incógnita espessuraDeixamos para sempre os companheiros,Que em tal caminho e em tanta desventuraForam sempre conosco aventureiros.Quão fácil é ao corpo a sepultura!Quaisquer ondas do mar, quaisquer outeirosEstranhos, assim mesmo como aos nossos,Receberão de todo o Ilustre os ossos.
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84 | Assim que, deste porto nos partirmosCom maior esperança e maior tristeza,E pela costa abaixo o mar abrirmosBuscando algum sinal de mais firmeza.Na dura Moçambique enfim surgimos,De cuja falsidade e má vilezaJá serás sabedor, e dos enganosDos povos de Mombaça pouco humanos.
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85 | Até que aqui no teu seguro porto,Cuja brandura e doce tratamentoDará saúde a um vivo, e vida a um morto,Nos trouxe a piedade do alto assento.Aqui repouso, aqui doce conforto,Nova quietação do pensamentoNos deste: e vês aqui, se atento ouviste,Te contei tudo quanto me pediste.
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86 | Julgas agora, Rei, se houve no mundoGentes que tais caminhos cometessem?Crês tu que tanto Eneias e o facundoUlisses pelo inundo se estendessem?Ousou algum a ver do mar profundo,Por mais versos que dele se escrevessem,Do que eu vi, a poder de esforço e de arte,E do que ainda hei de ver, a oitava parte?
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87 | Esse que bebeu tanto da água Aónia,Sobre quem tem contenda peregrina,Entre si, Rodes, Smirna e Colofónia,Atenas, Ios, Argo e Salamina:Esse outro que esclarece toda Ausónía,A cuja voz altíssona e divinaOuvindo, o pátrio Míncio se adormece,Mas o Tibre, com o som se ensoberbece;
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88 | Cantem , louvem e escrevam sempre extremosDesses seus Semideuses, e encareçam,Fingindo Magis Circes, Polifemos,Sirenas que com o canto os adormeçam;Dêem-lhe mais navegar à vela e remosOs Cicones, e a torra onde se esqueçamOs companheiros, em gostando o Loto;Dêem-lhe perder nas águas o piloto;
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89 | Ventos soltos lhe finjam, e imaginemDos odres e Calipsos namoradas;Harpias que o manjar lhe contaminem;Descer às sombras nuas já passadas:Que por muito e por muito que se afinemNestas fábulas vãs, tão bem sonhadas,A verdade que eu conto nua e puraVence toda grandíloqua escritura.
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90 | Da boca do facundo CapitãoPendendo estavam todos embebidos,Quando deu fim à longa narraçãoDos altos feitos grandes e subidos.Louva o Rei o sublime coraçãoDos Reis em tantas guerras conhecidos;Da gente louva a antiga fortaleza,A lealdade de ânimo e nobreza.
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91 | Vai recontando o povo, que se admira,O caso cada qual que mais notou;Nenhum deles da gente os olhos tira,Que tão longos caminhos rodeou.Mas já o mancebo Délio as rédeas viraQue o irmão de Lampécia mal guiou,Por vir a descansar nos Tétios braços;E el-Rei se vai do mar aos nobres paços.
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92 | Quão doce é o louvor e a justa glóriaDos próprios feitos, quando são soados!Qualquer nobre trabalha que em memóriaVença ou iguale os grandes já passados.As invejas da ilustre e alheia históriaFazem mil vezes feitos sublimados.Quem valerosas obras exercita,Louvor alheio muito o esperta e incita.
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93 | Não tinha em tanto os feitos gloriososDe Aquiles, Alexandro na peleja,Quanto de quem o canta, os numerososVersos; isso só louva, isso deseja.Os troféus de Melcíades famososTemístoeles despertam só de inveja,E diz que nada tanto o deleitavaComo a voz que seus feitos celebrava.
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94 | Trabalha por mostrar Vasco da GamaQue essas navegações que o mundo cantaNão merecem tamanha glória e famaComo a sua, que o céu e a terra espanta.Si; mas aquele Herói, que estima e amaCom dons, mercês,. favores e honra tantaA lira Mantuana, faz que soeEneias, e a Romana glória voe.
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95 | Dá a terra lusitana Cipiões,Césares, Alexandros, e dá Augustos;Mas não lhe dá contudo aqueles doisCuja falta os faz duros e robustos.Octávio, entre as maiores opressões,Compunha versos doutos e venustos.Não dirá Fúlvia certo que é mentira,Quando a deixava António por Glafira,
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96 | Vai César, sojugando toda França,E as armas não lhe impedem a ciência;Mas , numa mão a pena e noutra a lança,Igualava de Cícero a eloquência.O que de Cipião se sabe e alcança,É nas comédias grande experiência.Lia Alexandro a Homero de maneiraQue sempre se lhe sabe à cabeceira.
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97 | Enfim, não houve forte capitão,Que não fosse também douto e ciente,Da Lácia, Grega, ou Bárbara nação,Senão da Portuguesa tão somente.Sem vergonha o não digo, que a razãoDe algum não ser por versos excelente,É não se ver prezado o verso e rima,Porque, quem não sabe arte, não na estima.
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98 | Por isso, e não por falta de natura,Não há também Virgílios nem Homeros;Nem haverá, se este costume dura,Pios Eneias, nem Aquiles feros.Mas o pior de tudo é que a venturaTão ásperos os fez, e tão austeros,Tão rudos, e de engenho tão remisso,Que a muitos lhe dá pouco, ou nada disso.
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99 | As Musas agradeça o nosso Gamao Muito amor da Pátria, que as obrigaA dar aos seus na lira nome e famaDe toda a ilustro e bélica fadiga:Que ele, nem quem na estirpe seu se chama,Calíope não tem por tão amiga,Nem as filhas do Tejo, que deixassemAs telas douro fino, e que o cantassem.
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100 | Porque o amor fraterno e puro gostoDe dar a todo o Lusitano feitoSeu louvor, é somente o pressupostoDas Tágides gentis, e seu respeito.Porém não deixe enfim de ter dispostoNinguém a grandes obras sempre o peito,Que por esta, ou por outra qualquer via,Não perderá seu preço, e sua valia.
FIM. |